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domingo, julho 09, 2023

A IRA

"O mesmo se pode dizer dos apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis, portando-se de um modo ou de outro em igualdade de circunstâncias." (from "Ética a Nicômaco (Coleção Filosofia)" by Aristóteles)

sexta-feira, junho 16, 2023

Sócrates e os sofistas | História da Filosofia | Prof. Vitor Lima | Aul...

Art. 1 — Se é boa a seguinte definição de eternidade: a posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável. https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf

 

Art. 1 — Se é boa a seguinte definição de eternidade: a posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável. (I Sent., dist. VIII, q. 2, a. 1; De Causis, lect. II). O primeiro discute-se assim. — Parece que não é boa a definição de eternidade, que dá Boécio: a posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável. 1. — Pois, “interminável” é um conceito negativo. Ora, a negação é própria à noção de deficiência, que não convém à eternidade. Logo, na definição desta não deve entrar a palavra interminável. 2. Demais. — A eternidade implica uma espécie de duração. Ora, esta é própria, mais do ser, que da vida. Logo, a palavra vida não se devia incluir na noção de eternidade, mas, antes a de ser. 3. Demais. — Chama-se totalidade o que tem partes. Ora, isto não pode convir à eternidade, que é simples. Logo, é mal aplicada na definição a palavra total. 4. Demais. — Nem vários dias, nem vários tempos podem existir simultaneamente. Ora, na eternidade distinguem-se muitos dias e tempos, pois diz a Escritura (Mq 5, 2): Cuja geração é desde o princípio, desde os dias da eternidade; e (Rm 16, 25): segundo a revelação do mistério encoberto desde tempos eternos. Logo, a eternidade não é total e simultânea. 5. Demais. — “Todo” é idêntico a “perfeito”. Ora, se já se incluiu na definição a palavra total, é inútil acrescentar perfeita. 6. Demais. — A posse não é própria da duração. Ora, a eternidade é uma duração. Logo, não é posse. SOLUÇÃO. — Assim como devemos partir do simples para chegar ao conhecimento do composto, assim devemos partir do tempo para chegar ao conhecimento da eternidade. Ora, o tempo não é senão o número das partes do movimento, por anterioridade e posteridade. Pois, como em qualquer movimento, a uma parte sucede outra, pela enumeração das diversas partes, anteriores e posteriores, apreendemos o tempo, que não é senão o número do que é anterior e posterior, no movimento. Mas, onde não há movimento, mas, sempre o mesmo modo de existir, não se pode descobrir anterioridade e posteridade. Por onde, assim como a essência do tempo consiste na enumeração do que é anterior e posterior no movimento, assim, a da eternidade, consiste na apreensão da uniformidade do que está absolutamente fora do movimento. Demais. Consideram-se medidas pelo tempo as coisas que nele têm princípio e fim, como diz Aristóteles; e isto, porque tudo o que é movido inclui um princípio e um fim. Logo, o que é absolutamente imutável, não tendo sucessão, também não pode ter princípio nem fim. — Assim, pois, por duas características se conhece a eternidade: o que nela está é interminável, isto é, não tem princípio nem fim, duas noções que implica o termo, e em segundo lugar, justamente por não ter sucessão, a eternidade existe total e simultaneamente. DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Costuma-se definir o que é simples, por negação; assim, ponto é o que não tem parte; mas isto não quer dizer, que a negação seja a essência de tais seres, senão que o nosso intelecto, apreendendo primeiro o composto, só pode chegar ao conhecimento do simples, removendo a composição. RESPOSTA À SEGUNDA. — O que é verdadeiramente eterno não só é ser, como também vivente; e a vida se estende, de certo modo, até à operação, mas não ao ser. Ora, a extensão da duração parece que deve ser considerada relativamente à operação, antes que relativamente ao ser; e, por isso, o tempo é o número do movimento. RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz a definição, que a eternidade é total, não por ter partes, mas, porque nada lhe falta. RESPOSTA À QUARTA. — Assim como a Deus, embora incorpóreo, a Escritura aplica, metaforicamente, nomes de coisas corpóreas, assim também à eternidade, que existe total e simultaneamente, aplica a denominação própria do que é sucessivo no tempo. RESPOSTA À QUINTA. — O tempo pode ser considerado, em si mesmo, como sucessivo, ou em um dos seus momentos, que é imperfeito. Ora, a definição diz — total e simultaneamente — para excluir o tempo; e, perfeita, para excluir o momento temporal. RESPOSTA À SEXTA. — O que é possuído o é firme e tranquilamente; e, por isso, para designar a imutabilidade e a indeficiência da eternidade a definição empregou a palavra posse.

quarta-feira, maio 06, 2020

Homonímia sutil

2) Homonímia sutil
“Usar a homonímia para tornar a afirmação apresentada extensiva também àquilo que, fora a identidade de nome, pouco ou nada tem em comum com a coisa de que se trata; depois refutar com ênfase esta afirmação e dar a impressão de ter refutado a primeira.”[5]

terça-feira, maio 05, 2020

Escada do Amor: síntese da educação filosófica em Platão (Parte II)

Escada do Amor: síntese da educação filosófica em Platão (Parte II)
Thiago Brum Teixeira

O coração da filosofia

Três diálogos platônicos revelam, com especial clareza, a estrutura da educação filosófica: o Banquete, a República e o Fedro (não por acaso, três dos diálogos mais belos, e mais lidos, de todo corpus platonicum). Em cada um deles encontramos uma imagem, pela qual podemos ver essa estrutura: no Fedro, encontramos a biga alada com a parelha de cavalos (um obediente e outro desobediente); na República, a caverna, com seus prisioneiros e seu caminho íngreme em direção ao Sol; no Banquete, a bela escada do amor (ou scala amoris) a conduzir o amante da beleza material em direção à Beleza espiritual. Para compreender a estrutura comum que perpassa essas imagens, vejamos alguns de seus detalhes.

Lá e de volta outra vez
O Banquete nos encanta com a revelação de Diotima, sacerdotisa conhecedora da arte de amar. Nessa revelação ela descreve a escada do amor (211 c-d), que é por onde aquele despertado pela beleza cá embaixo deve conduzir-se. Para Diotima, o amor humano, despertado pela visão da beleza terrena, contêm, em germe, um desejo profundo, impossível de ser saciado por quaisquer objetos ou pessoas cá embaixo. Portanto, ao apaixonado, abrem-se dois caminhos: a busca insaciável em atender seu desejo através das “belezas” do mundo, ou o aprofundamento de seu amor através da scala amoris. Ele terá de compreender as belezas cá de baixo como degraus através dos quais seu amor pode ascender até chegar ao cume dessa escada: lá onde está a Beleza-em-si, ou Ideia do Belo. A contemplação dessa Ideia dará a medida correta daquilo que merece ser amado, ou não; de volta ao mundo cá de baixo, poderá desprezar as falsas belezas, na medida em que seu coração for fiel à Beleza real.

Na alegoria da Biga (Fedro, 246 a – 250 c), Sócrates descreve a estrutura da alma humana comparando-a a uma biga de cavalos alados (um belo e bom e outro feio e mau) e um auriga, cuja missão é comandar esse veículo desigual. Sua condução mira chegar ao “lugar supra-celeste” (247 c), que também pode ser chamado de “lugar inteligível”, ou ainda, “campina da verdade” (tó aletheías pedíon, 248 b). Esse local é a habitação das Ideias, ou seja, das manifestações do Ser Supremo; a alma que até lá ascende contempla o “espetáculo do Ser” (248 b), que lhe serve de alimento. Em seguida, por inépcia do condutor, e pela dificuldade em lidar com a dualidade dessa biga ( um cavalo puxando pra cima e o outro pra baixo) a parelha alada termina por cair, de modo a encarnar em um “corpo de barro” (246 c). Em seguida à queda, sobrevém o esquecimento daquele “fragmento de coisas verdadeiras” (248 c). A esperança dessa alma caída será, pelas belezas cá de baixo, lembrar-se daquela campina supra-celeste; através dessa reminiscência, ela poderá resgatar suas asas e, novamente, ascender e contemplar o lugar inteligível.


A carruagem de Apolo, de Odilon Redon
Na República (livro VII), Platão compara o efeito da educação na natureza humana à libertação de um prisioneiro, habitante em uma caverna de sombras desde a infância. Tomava as sombras por seres concretos e a luz de uma fogueira pela luz do Sol; uma vez liberto, terá de reorientar sua visão, gradativamente, até a luz real. À medida que progredir nessa conversão, subirá por um “caminho íngreme e escarpado”, até chegar ao cimo desse trajeto e contemplar a fonte real de toda luz: o Sol, símbolo da Ideia do Bem. Tendo contemplado essa maravilhosa fonte, não poderá lá permanecer, acreditando-se já instalado na “ilha dos bem-aventurados”; terá de descer novamente, de volta à caverna escura e recheada de ilusões, retornar ao reino do lusco-fusco. Terá de voltar para auxiliar seus companheiros, para doar-se em prol da luz que pôde contemplar.


“Alegoria da Caverna de Platão”, por Jan Saenredam”
Através desses três resumos, podemos apreender uma estrutura que os perpassa: 1- a necessidade de ascender, partindo de uma região inferior, limitada e material, em direção a uma região superior, ilimitada e espiritual (meta-física, i.e. além do físico); 2- lá chegando, é preciso contemplar as Ideias; 3- tendo contemplado o suficiente, é preciso descer = Lá e de volta outra vez.

Por sua simplicidade, escolho a escada como símbolo dessa estrutura. Ascensão, contemplação e descida são três momentos de uma mesma jornada, a jornada metafísica. Essa jornada é a própria educação filosófica, é a própria filosofia: o filósofo é quem exercita a ascensão, a contemplação e a descida, através da escada do amor.

A escada ascendente: filosofia em três tempos

A escada de Jacó, de William Blake
A escada filosófica, assim como a escada de Jacó, liga a terra ao céu, o mundo material ao mundo espiritual. O filósofo é aquele que assume o dever de constantemente re-atualizar as ações que compõe essa escada. Esse compromisso existencial, a um só tempo moral, intelectual e afetivo, talvez ganhe sua expressão mais feliz na fórmula de Pierre Hadot [1]: exercício espiritual. A filosofia platônica é um exercício espiritual. Desse exercício, podemos destacar três momentos:

Ascensão

Ascensão é ascese: uma disciplina da atenção, uma concentração cujo objetivo é purgar a mente de suas ilusões. Essas ilusões podem ser resumidas em uma só: acreditar-se o criador da verdade. O intelecto tomado pelo orgulho, corrompe-se: ao invés de abrir-se ao que há além, fecha-se em si próprio, num ensimesmamento labiríntico e autofágico. A integridade intelectual (sua saúde) consiste em abertura. A verdade já é (está aí), a tarefa do filósofo é descobri-la. Esse é o sentido da palavra grega Alétheia (ἀλήθεια: verdade, no sentido de des-velamento, de a-, negação, e lethe, “esquecimento”) [2]. Existe a verdade; o desejo profundo do intelecto humano é des-esquecê-la, des-cobri-la, encontra-la, reconhece-la.

Ascese é a busca dessa abertura, que requer um esvaziamento. Mais do que uma coerência lógica, a ascensão pede uma purificação da intenção, de modo a se desejar a Verdade, se desejar o Bem, ainda que ele desmanche todo o meu castelinho de pensamentos, ainda que reduza ao pó a rede intricada de meus raciocínios. É um desejo abnegado, desinteressado. A ascese é um exercício cujo objetivo é tornar-nos dóceis à verdade. Mas abdicar daquilo que acredito ser certo em prol do Certo, nem sempre é fácil. A obsessão em estar certo é sintoma da ausência de uma pergunta fundamental: será que, de fato, estou certo?


A ascensão do espírito, Vladimir Kush
Contemplação

A palavra contemplação vem de contemplatio, tradução latina da palavra grega theoria. Contemplar não é criar raciocínios ou sistemas, não é inventar éticas, nem deslizar suavemente em retóricas; é “o simples olhar (simplex intuitus) fixado com amor sobre a Verdade” [3]. É o olhar despojado do ego: desinteressado, autotranscendente, limpo. O filósofo não é um pensador, o que procura é o contrário do pensamento. Está além de sua razão, não é sua invenção. A contemplação é um êxtase (do grego ekstasis, formado de ek (fora ou além) e stasis “em pé, estatura” ou “parado, estacionário” = sair de si, estar além de si) que pode ocorrer desde as percepções sensoriais até a contemplação da realidade espiritual. Nesse sentido, ela pode ser exercitada, partindo da contemplação da natureza física até alcançar realidades mais altas.


Detalhe da pintura Escola de Atenas, de Rafael.
Espantados com a beleza do mundo, admirados com a corrente de causalidades por detrás dos fenômenos, os filósofos saem em busca do tutano vital. Da “Arché” cósmica (pré-socráticos), da “Ideia do Bem” (Platão), do “Primeiro motor” (Aristóteles), da “Coisa em si” (Kant), do “Lógos Encarnado” (Cristãos), do “Sentido” (Frankl): saem em busca “daquilo que se impusesse mesmo a um pensamento incapaz de pensá-lo; [de] algo que eles não pudessem inventar” [4]. O ápice da mente humana (apex mentis), segundo Platão, não é sua capacidade raciocinativa (dianoia); é sua abertura contemplativa (nous). Os filósofos querem transcender a dianoia em direção ao nous.

Qual a diferença entre essas duas formas de apreensão? Na alegoria da Linha (Rep. 509 d- 511 e), Platão descreve a dianoia como sendo a investigação que toma hipóteses por princípios em busca de conclusões coerentes. Já o nous, ao invés de seguir o curso natural do pensamento (caçando conclusões a partir de hipóteses), desapega-se de suposições e abre-se ao “Dado”, em busca do princípio real. Para fins contemplativos, vale mais uma cabeça oca à uma cabeça cheia de ideias.

Segundo Abbagnano, o uso que Platão faz da palavra dianoia equivale àquilo que entendemos por razão discursiva, indicando “o procedimento racional que avança inferindo conclusões de premissas” [5]. São Tomás de Aquino identificará a dianoia ao conhecimento caracteristicamente humano, opondo-o à ciência intuitiva de Deus que, segundo o filósofo, “entende tudo simultaneamente em si mesmo, com um ato simples e perfeito de inteligência” [6]. O nous é a participação (o tanto possível ao homem) dessa ciência intuitiva,corresponde àquilo que podemos entender por intelecto intuitivo. Aristóteles considerava-o o meio pelo qual se pode apreender (intuitivamente) os primeiros princípios, mediante os quais a razão discursiva poderá operar [7]. A partir dessas definições, a contemplação (nous) pode ser entendida como a apreensão intuitiva, imediata (no sentido de não mediada), de princípios que transcendem quaisquer raciocínios. Josef Pieper, em seu livro Leisure as the basis of culture,tratando da tradição clássica da filosofia diz:

Os medievais distinguiam entre o intelecto como ratio e o intelecto como intellectus. Ratio é o poder do pensamento discursivo, de pesquisa e re-pesquisa, abstração, refinamento, e conclusão [cf. o latino dis-currere, “correr para e de”], já o intellectus refere-se à habilidade de “simplesmente olhar” (simplex intuitus), para a qual a verdade apresenta-se a si mesma como uma paisagem apresenta-se aos olhos. O poder de conhecimento espiritual da alma humana, como os antigos a entendiam, é, de fato, duas coisas em uma: ratio e intellectus, todo conhecer envolve ambas. O caminho da razão discursiva é acompanhado e penetrado pela vigorosa visão do intellectus, que não é ativo mas passivo, ou melhor, receptivo – um poder receptivo operante no intelecto (…) Isso significa que o conhecimento humano é uma participação no poder não discurso da visão [intelectual] [8].

E qual é o conteúdo dessa contemplação? Em Platão, o “objeto” máximo a ser contemplado é a Ideia do Bem. O que é a Ideia platônica? Em primeiro lugar, é preciso distanciá-la do uso corrente da palavra ideia. Usualmente, ela designa um produto mental, um epifenômeno da consciência. Dizemos: “qual sua ideia a respeito de tal coisa?” Com isso, queremos saber: “que pensas? qual tua opinião?”. A Ideia platônica é justamente o contrário disso. Ela existe por si só, independente do pensamento, definitivamente não é uma lucubração da mente humana:

Assim como o amor autêntico não cria seu objeto, as aspirações humanas também não fundam as Formas. “Deus é a medida de todas as coisas”, o Bem produz a verdade e a “faculdade de conhecer”. As Formas nada devem ao nosso “entusiasmo”, ao nosso “sentimento religioso”, elas não são o “ideal” que nós forjamos. As realidades divinas se deixam apreender, mas elas existem, mesmo que não houvesse nenhuma alma para aspirar a elas. [9]

A Ideia do Bem é quem dá verdade às coisas conhecidas e o poder de conhecer ao cognoscente, além de dar o ser a ambos. Por isso, Platão a compara ao Sol, pois o astro rei ilumina, torna visível o que sem ele não seria e dá a existência ao que vê e ao que é visto. O olho não cria o claro/ é o Claro quem dá a vista. A vida intelectual acessa, des-cobre, um reino de sentido e verdade aonde há um Rei que tudo domina. Platão o chama de Ideia do Bem.


Santo Agostinho, retratado por Philippe de Champaigne
Não entendo que a verdade a ser encontrada nesse reino luminoso seja uma fórmula fria, um código cibernético, ou coisa que o valha. O eros filosófico deseja a sabedoria. Nesse sentido, a verdade captada pela contemplação é orientação existencial e alimento espiritual. É pensamento e sentimento, integrados em uma vivência pessoal da luz. No que diz respeito à esse páthos, à emotividade presente na experiência contemplativa, vale lembrar as palavras de Lavelle:

“Há na vida momentos privilegiados em que parece que o Universo se ilumina, que a nossa vida nos revela sua significação, que queremos o destino mesmo que nos coube como se nós mesmos o tivéssemos escolhido; depois o Universo volta a fechar-se, tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tateando num caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo aos nossos passos. A sabedoria consiste em salvaguardar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver e fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.

Não há homem que não tenha conhecido tais momentos, mas ele os esquece depressa como um sonho frágil, pois ele se deixa captar quase imediatamente por preocupações materiais ou egoístas que ele não consegue atravessar ou ultrapassar, porque ele pensa reencontrar nelas o solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo que é próprio de uma grande filosofia é reter e reunir esses momentos privilegiados, mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz cujo horizonte é infinito, do qual todas as partes são solidárias e que está sempre oferecido ao nosso pensamento e que, sem jamais dissipar as sombras da caverna, nos ensina a reconhecer em cada uma delas o corpo luminoso do qual ela é a sombra.“[10]

Ah, os momentos privilegiados… onde nosso coração se afina ao compasso da Vida; haverão palavras para descrevê-los? Esses instantes, onde o Divino deixa de ser um conceito abstrato para ser uma vivência concreta, visceral. Não serão esses momentos, apesar de fugidios, o pão, a água, a substância da Vida? Não compõem, unidos, o enredo íntimo de cada um, a trama redentora do grande Tecelão, ponto a ponto fazendo cumprir o destino final do homem: “assimilação a Deus” [11]? Eis a sabedoria necessária: conservar esses momentos na memória, fazer deles nossa morada habitual.

Descida

“Que dificuldade para o homem tirar a consequência prática de sua convicção intelectual, quando esta lhe exige um sacrifício! Quão longo o caminho que vai da cabeça ao coração!”[12]

Da cabeça ao coração, não faz sentido que o resultado prático da contemplação seja uma fuga à vida mundana, em direção (por exemplo) a um isolamento idílico nas montanhas. Como o encontro com o Bem poderia resultar em irresponsabilidade? Do contrário, Sócrates ordena aos filósofos: voltem à caverna!

Depois da iluminação, as louças pra lavar. A brancura da torre de marfim não salva; é o sangue do sacrifício quem salva. A realidade espiritual não deve servir de desculpa à fuga das responsabilidades corriqueiras; ao contrário, sua contemplação dá um sentido transcendente às tarefas cotidianas e até ao sofrimento. A verticalidade do mundo espiritual dá um norte ao horizonte da vida cotidiana. A poesia celeste infunde alma na prosa diária. O filósofo vencerá a tentação de dissolver-se em geléia cósmica, abraçando os sacrifícios da vida, em prol do Bem.

A filosofia, como o coração, vibra em sístole e diástole: subida e descida, ratio e intellectus, ginástica e música, theoria e práxis. A ascensão é práxis preparatória, a theoria é o cume contemplativo, a descida é a práxis resultante. E assim, gradualmente, o filósofo sobe a escada ascendente. A cada ciclo vencido, a cada degrau galgado, aproxima-se (como na escada de Jacó, pintada por Blake) da fonte suprema de todo saber, do “rei de todas as coisas” [13]:centro e altura iluminando os esforços dos amantes da sabedoria.


[1] Pierre Hadot é conhecido por entender a filosofia antiga como sendo um exercício espiritual, com esse termo quer dizer que o filosofar envolve, em sua acepção clássica, todas as dimensões do ser humano (intelectual, afetiva, moral), além de configurar-se como um modo de vida, uma escolha existencial de profundas consequências. Cf. O que é filosofia antiga? (Editora Loyola); Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga (É Realizações).

[2] Recentemente essa etimologia foi relembrada, no discurso de nosso ministro de estado das Relações Exteriores, o embaixador Ernesto Araújo. É um discurso emocionante, que caminha do grego ao tupi, vale a pena conferir. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=prT5npDcDhY.

[3] AQUINO, São Tomás. Suma Teológica, II-II 180,3,resp.1.

[4] CARVALHO, Olavo de. Artigo: Os pensadores e o êxtase.

[5] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, pg. 339.

[6] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, pg. 339.

[7] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VI, 6, 1140b 31 ss.

[8] PIEPER, Leisure as the basis of culture, p. 32 – 33.

[9] GOLDSCHIMIDT, Victor. A religião de Platão, pg. 30-31.

[10] LAVELLE, Louis. “Témoignage” (Testemunho), apêndice do livro De l’Intimité Spirituelle (Da Intimidade Espiritual), disponível em: http://classiques.uqac.ca/classiques/lavelle_louis/intimite_spirituelle/intimite_spirituelle.pdf.

[11] Encontramos essa expressão curiosa no diálogo Teeteto: “Daqui [impossibilidade de destruir o mal] nasce para nós o dever de procurar fugir o quanto antes daqui [terra] para o alto. Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus (homoisis theoi- assimilação a Deus); e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria” (176a-b). Que Deus é esse, que foge do mundo? Estará Sócrates falando a sério? Ou estará esperando que o leitor pule da cadeira e fale: “Epa, que deus mixuruca é esse que queres que eu imite?”. O texto platônico é vivo, pois convida o leitor ao diálogo.

[12] CONTI, Sabino Lino. Cintilações. Ed. F.T.D. 1966.

[13] Apesar de não haver consenso, entre os comentadores, quanto à autenticidade dessa carta, a expressão platônica continua fascinante e, a meu ver, coerente com o projeto platônico e com a tese de Platão ser um cristão avant-la-lettre. Eis o trecho: “[Platão dirigindo-se a um interlocutor] Segundo o relato dele, de fato, você afirmaria que não teria lhe ficado clara a natureza do Primeiro: será então necessário que o conduza eu mesmo neste assunto, mas por meio de enigmas, para que, no caso em esta carta cair em algum canto do mar ou da terra, quem a for ler não possa compreendê-la. Eis como estão as coisas. Em torno ao rei de todas as coisas, todas as coisas estão; todas existem graças a ele, e ele é causa de todas as coisas belas (Carta II, 312 d-e)”.


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quinta-feira, abril 30, 2020

Escada do Amor: síntese da educação filosófica em Platão (Parte I)

Escada do Amor: síntese da educação filosófica em Platão (Parte I)

1. Platão e a Aurora da Filosofia

A crise psicológica abre um caminho duplo: fuga ou enfrentamento. Esse é o significado da palavra grega krísis: momento de decisão. A luta por tomar decisões, as mais conscientes possíveis, é uma constante da natureza humana, talvez seu cerne. A filosofia é filha da crise, surge de um parto doloroso no ventre do caos. Transmutar a noite da ignorância no dia da compreensão é a jornada fundamental por nosso ouro. A filosofia é um projeto de conhecimento que busca, o mais fielmente possível, encarnar o desejo humano por decisões cada vez mais conscientes, cada vez mais sábias. Há milhares de anos, desde sua concepção original em Platão, esse caminho vem sendo trilhado por ignorantes. Pois o primeiro passo da jornada filosófica é reconhecer a própria ignorância.

Muitos outros encontraram, e vem encontrando, esse mesmo caminho. Gregos, ingleses, norte-americanos, árabes; pessoas de diferentes épocas e com diferentes configurações existenciais. Essa tradição milenar, um dos pilares da civilização ocidental, foi fundada com a obra platônica. Nesse ponto, estou de acordo com Whitehead:

“A caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que consiste em uma série de notas de rodapé a Platão”.

E também Emerson, brilhante ensaísta norte-americano do século XIX: “Platão é Filosofia; e Filosofia, Platão”.

Aqueles que vieram antes, os chamados pré-socráticos, não tinham ainda a autoconsciência necessária para se autoproclamarem filósofos. Foram prelúdios, relâmpagos de lucidez, ao sabor dos poetas (1). Com Platão a filosofia ganha, como ressalta o professor Olavo de Carvalho (2), o caráter de projeto autoconsciente.

Por outro lado, quem vem na sequência da história da filosofia, seja para concordar em alguns pontos e corrigir outros (Aristóteles, por exemplo) ou mesmo para negar absolutamente o projeto platônico (Nietzsche, por exemplo), invariavelmente reconhece a originalidade de Platão. Ao falar de filosofia estou, em alguma medida, falando do projeto platônico. Por quê? Porque é em Platão que está a origem da filosofia.

Mas, trocando em miúdos, o que compõe esse projeto, a Filosofia? Em resposta a que crise ela foi criada? Para explorar essas perguntas, será preciso uma breve incursão ao contexto cultural do qual a obra platônica emergiu.

2. Platão, o médico da Pólis


Estátua de Platão e a deusa Atenas (personificação da Sabedoria), na entrada da Academia em Atenas, Grécia (fundada em 1926).

Em seu diálogo Górgias, Platão compara o filósofo ao médico. A analogia é interessante e serve de molde para a compreensão do projeto platônico. De maneira geral, para se tratar uma doença, o médico emprega três ações: diagnóstico, solução e aplicação. O diagnóstico significa uma leitura dos sinais apresentados no paciente, de modo a que se encontre a doença, ou seja, a raiz daquilo que lhe aflige; a leitura correta desses sinais leva o médico a um correto diagnóstico. Em seguida, consciente do que aflige o paciente, o médico buscará uma solução, ou seja, o que precisa ser feito tendo em vista a cura daquele mal. Tendo encontrado essa solução, será a vez de definir, através dos recursos disponíveis, uma maneira de aplicar essa solução. A doença encontrada por Platão em sua cidade é de ordem política. E assim como o médico, ele procurará as raízes, a solução e o tratamento dessa doença.

Diagnóstico: uma crise cultural

A filosofia platônica parte de um profundo desgosto frente à decadência política de Atenas. A condenação de Sócrates serve como símbolo dessa triste situação, vivenciada amargamente por Platão. Referindo-se às revoluções políticas que antecederam a condenação de Sócrates, o filósofo nos relata:

“Levando-se em conta minha mocidade, não é de admirar que eu tivesse ilusões. Por isso, imaginava que eles [os novos líderes políticos] governariam a cidade fazendo-a passar das vias da injustiça para as da justiça (…) Ora, o que vi foi que em pouquíssimo tempo esses homens deixaram parecida a antiga ordem de coisas com a verdadeira idade de ouro. Como exemplo de suas arbitrariedades, bastará notar o que fizeram com o meu velho amigo Sócrates, que eu não vacilo em proclamar o varão mais justo de seu tempo.”(3)


A morte de Sócrates (1787), Jacques-Louis David.

Contudo, nosso filósofo não se contenta em constatar a superfície do problema; como bom médico, percebe que a corrupção política é apenas um sintoma, cuja raiz repousa em um outro tipo de corrupção, um tipo mais sutil, menos evidente: a corrupção intelectual. Dadas a decadência da religião tradicional grega e o desenvolvimento sem precedentes da técnica argumentativa, a nova geração de líderes atenienses reconhecia como formadores uma nova classe de professores: os sofistas.

Essa classe de professores constituía aquilo que hoje chamaríamos de ensino superior, ou seja, depois do ensino básico (no caso dos atenienses, a educação na música (arte das musas) e na ginástica) o ensino sofístico configurava uma continuidade na formação intelectual dos jovens. Qual é o tom geral da educação sofística? O treinamento na técnica argumentativa, a retórica e a erística, visando a formar jovens que, através do domínio da palavra e da argumentação, pudessem destacar-se na vida pública.

E o que há de errado nisso? O DNA sofístico é corrupto por natureza, pois a importância e o desenvolvimento dedicados à retórica baseiam-se em um relativismo moral de consequências desastrosas. A sofística parte dos pressupostos de que não existem verdade objetiva e valor moral objetivo; tudo quanto há no universo humano é convenção. Ora, por que então algumas convenções sobrepõem-se às outras, no caso de uma lei, de uma ideia ou de um costume moral, por exemplo? “Veja bem…”, responderá o sofista, “ o que prevalece na cultura humana não é graças a seu valor objetivo, é graças ao poder retórico que o defende”. Na visão sofística, tudo o que existe no âmbito da cultura humana são embates retóricos entre diferentes discursos; não existe um certo ou um errado, o que existe é uma boa ou uma má retórica. Quem souber defender seu ponto de vista adequadamente ganhará o debate e, portanto, estará certo, será lei. Sendo assim, a ciência régia, a única ciência que importa aprender, é a ciência da retórica. O que conhecemos por lei, não passa da vontade do mais forte. Quem é o mais forte? Aquele que domina a retórica, que faz vibrar a assembleia, aquele que convence. Tudo é discurso (alguém se lembrou de Foucault aí?) e prevalece o discurso que convence; a verdade é convenção, ou seja, é a meretriz da Retórica. Como exemplo do espírito sofista, podemos lembrar da célebre frase de Protágoras: “ o homem é a medida de todas as coisas”(4)


Nessa imagem, o rei Luís XIV trajado de rei sol. Assim, o sofista e o tirano prentendem encarnar a sabedoria. Iludidos, acreditam-se detentores de umbigos solares, ao redor dos quais todo o universo deve, naturalmente ou a força, girar. Quem terá a coragem de mostrar-lhes o ridículo engano do qual padecem?

A consequência política da educação sofística é abominada por Platão como sendo a pior corrupção possível ao ser humano: a tirania. O tirano é justamente quem aplica a tese sofística até as últimas consequências. “Não há lei superior”, dirá o tirano, “a lei é a vontade do mais forte. Eu sou o mais forte; portanto: Eu sou a lei!”. Sob o jugo de tiranos a gloriosa Atenas, o berço cultural do Ocidente, ruiu.

A morte de Sócrates evidenciou essa ruína, expôs a injustiça e a corrupção reinantes. O contraste em relação à gloriosa Atenas de Péricles evidenciava que algo fora perdido. Tornava-se necessário reencontrar um princípio de ordem capaz de resgatar a civilização grega. Em busca desse princípio, Platão desenvolve um projeto original de cultura, a filosofia.

Filósofo, o antídoto do sofista

Na mesma carta VII, sua investigação leva-o a conceber os glóbulos brancos, os anti-corpos, capazes de sanar a doença política ateniense: o filósofo. Eis a famosa tese platônica:

“Por fim, cheguei à conclusão de que as cidades do nosso tempo são mal governadas, por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem pra melhor. Daí ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas da justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar, por algum motivo divino, os dirigentes das cidades.”(5)

Essa tese traz em si duas mudanças de perspectiva fundamentais: 1- do âmbito coletivo (a pólis), Platão passa ao âmbito individual (o filósofo); 2- Da ação política, Platão passa à ação educativa: é preciso formar filósofos verdadeiros. Eis a solução platônica, segundo a vejo: o princípio de ordem capaz de regenerar a sociedade, a semente civilizacional da qual a salvação da pólis depende, encontra-se dentro do indivíduo. Como acessar e atualizar essa semente? Através da educação filosófica. Portanto, resgatando nossa metáfora médica, encontramos a solução e a aplicação que seguem ao diagnóstico platônico: o filósofo e a educação filosófica.

O filósofo é a solução para a crise política observada por Platão, pois ele é o antídoto agindo nas causas últimas daquela crise. Como vimos, é a cultura sofística quem está na origem da corrupção da pólis. Ela contêm, em germe, a pior das degenerações políticas: a tirania. De que modo, portanto, a cultura filosófica contrapõe-se a ela? Por sua própria natureza intrínseca a filosofia combate a sofística. O filósofo, por definição, reconhece, em primeiro lugar, a existência da Verdade objetiva (existe a sophia, a sabedoria); em segundo lugar, ele reconhece que essa Sabedoria não se encontra nele, mas além dele, por esse motivo ele precisa buscá-la (philo, amor, + sophia, sabedoria). Ao passo que o sofista, por desacreditar na objetividade da sabedoria, pretende encarná-la em si mesmo, autoproclamando-se sábio (sóphos, daí a palavra sofista); o filósofo é quem, por reconhecer a objetividade da sabedoria, reconhece sua própria ignorância, ou seja, sua falta de sabedoria (ou vice-versa) e, não obstante, decide-se por buscá-la amorosamente. Como exemplo do espírito filosófico, podemos lembrar da célebre frase socrática: “só sei que nada sei”.

Como podemos observar, o projeto de conhecimento da sofística está imbuído de orgulho, de presunção; dada a inexistência real da sabedoria e da verdade, é a mente humana quem servirá de régua última da realidade, a capacidade racional-linguística é quem ocupará o lugar de Deus. Já o projeto de conhecimento filosófico está fundado sobre a humildade, o reconhecimento de uma fonte de sabedoria superior (ou seja, para além de si) e frente a qual só uma atitude é adequada: a busca amorosa. Nesse projeto, a mente humana, sua capacidade racional-linguística, é apenas um instrumento capaz de aproximar-se da Verdade. Para o sofista, reconhecer-se plenamente humano é empoderar-se da mente enquanto criadora da verdade. Para o filósofo, reconhecer-se plenamente humano, é aceitar, humildemente, que o máximo da mente humana é que seja o mais transparente possível, de modo a ser um receptáculo da Verdade. Essa oposição, chave para toda a cultura ocidental, está muito bem expressa nas palavras do clarividente filósofo francês do século XX, Louis Lavelle:

“ Não há senão duas filosofias entre as quais é necessário escolher: a de Protágoras, segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, mas a medida que ele se dá é também sua própria medida; e a de Platão, que é também a de Descartes, para quem a medida de todas as coisas é Deus e não o homem, mas um Deus que se deixa participar pelo homem, que não é somente o Deus dos filósofos – o Deus das almas simples e vigorosas que sabem que a verdade e o bem estão acima delas e jamais se recusam àqueles que as buscam com coragem e humildade” (6).

Ao investigar a crise política de Atenas, Platão encontra sua raiz, a corrupção intelectual dos sofistas, e sua solução: o filósofo. A aplicação dessa solução é justamente a maneira pela qual formar esse antídoto ao sofista, o filósofo. Por esse motivo, Platão fundou uma escola, a Academia, e não um partido político; também é por esse motivo que Platão não foi, ele próprio, um político, mas um professor.


Alcibíades sendo ensinado por Sócrates (1777), de François Andre Vincent. Sócrates, o memorável: ditos e feitos dedicados à busca amorosa da Sabedoria. Amou-a tanto que entregou o maior de seus bens, a vida. Seu sacrifício faz dele o paradigma de filósofo, a figura modelar do amante buscador. Ó Sócrates, granjeaste a admiração da posteridade e continuas hoje, como o fazias então, a nos inquirir: quid est?

Aplicação: a educação filosófica

O filósofo é o antídoto do sofista, logo, é preciso formar o filósofo. Como formá-lo? Com essa pergunta, chegamos ao coração da filosofia platônica. O legado platônico é, acima de tudo, um legado educacional: Platão é o filósofo da paideia [palavra grega para educação], por excelência. A educação filosófica é, acima de tudo, um modo de educar cuja finalidade é a formação do filósofo. Qual o conteúdo dessa formação?

Os documentos concretos desse conteúdo estão reunidos na obra platônica. O conjunto de seus diálogos é o currículo de sua escola. Ali estão as informações, as revelações e os testes necessários à aprendizagem e à formação do filósofo. O princípio capaz de dar unidade aos diálogos platônicos deve ser, sobretudo, um princípio pedagógico.

Dadas a riqueza e complexidade vertiginosas dessa obra, minha proposta é descrever aquilo que considero a estrutura essencial desse projeto de formação. Platão, filósofo por necessidade e poeta por estirpe, simboliza esse projeto na forma de um caminho ascendente, de uma escada do amor; esse será o tema de meu próximo texto.

_____________________________________________

(1) É preciso dizer que nem todos os estudiosos da filosofia concordam sobre esse ponto. Alguns, por exemplo, evocam Pitágoras (séc. VI a. C.). Segundo algumas fontes, ele teria sido o primeiro a negar a alcunha de sábio, forjando o neologismo filósofo. Em todo caso, dado que a obra dos pré-socráticos (incluindo Pitágoras) nos chegou na forma de fragmentos, a mim permanece cabível considerar a obra platônica o primeiro documento integral (a obra platônica nos chegou por completo) a transmitir o espírito original da filosofia.

(2) CARVALHO, Olavo. História Essencial da filosofia. É Realizações. Aulas 02 e 03.

(3) PLATÃO. Carta VII (324 d-e). Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.

(4) HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos / Martins Fontes, 2004. Pág: 808.

(5) PLATÃO. Carta VII (326 a-b). Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.

(6) LAVELLE, Louis. De L´Être, p. 35.


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terça-feira, fevereiro 11, 2020

A CORAGEM EM ARISTÓTELES. Ramiro Marques

A CORAGEM EM ARISTÓTELES
Ramiro Marques

Coragem vem do latim cor que significa coração. Assim é, porque os
romanos consideravam que a coragem tem mais a ver com o coração
do que com a razão. É uma força, uma força da alma, uma das
quatro virtudes cardinais. É um poder de acção física e moral. Uma
causa agente que produz um efeito. É uma energia física e moral. A
coragem é o mesmo que a bravura e a firmeza. O seu contrário é a
cobardia, a poltronaria, a fraqueza e a pusilanimidade.
A coragem é a justa medida acerca dos sentimentos de medo e
de confiança. O medo é a expectativa de algo de mau que está para
acontecer ou que pode acontecer. Embora todas as pessoas tenham
receio das coisas más, como por exemplo, da doença, da má
reputação ou da pobreza, a coragem não está relacionada com esse
tipo de coisas. Recear a má reputação ou a doença é uma atitude
correcta, tanto para a pessoa corajosa como para as outras pessoas.
A coragem diz apenas respeito à ausência de medo da morte,
em certas circunstâncias. E quais são essas circunstâncias? São as
relacionadas com a possibilidade de morrer em combate, durante
uma guerra, em que o cidadão é chamado a lutar para defender a
sua pátria. Embora seja de esperar que a pessoa corajosa seja firme
na doença, a coragem é uma virtude que admiramos quando se tem
de usar a força e quando vale a pena morrer em combate.
Qual é o estado de carácter da pessoa corajosa? A pessoa
corajosa é capaz de ficar imperturbável perante os maiores perigos,
aguentando firme contra os perigos, da forma correctamente
prescrita pela razão, e em benefício de finalidades rectas. A pessoa
corajosa é a que "aguenta firme as coisas certas e receia as coisas
certas, em função da finalidade recta, da forma correcta, no
momento certo, pois as acções e os sentimentos do corajoso
reflectem o que vale a pena e o que a razão prescreve" (1).
A pessoa que não tem medo de nada, em circunstância alguma,
não pode ser chamada de corajosa. A temeridade não é o mesmo que
coragem. É mais uma imprudência do que coragem. O temerário é
audacioso, arrojado e intrépido, mas não é propriamente corajoso. O
temerário pode, inclusivamente, pôr em perigo de vida os seus
companheiros sem necessidade.
A pessoa corajosa só enfrenta o perigo quando é necessário.
Não o procura, mas é capaz de o enfrentar quando é necessário. A
pessoa cobarde é a que receia as coisas erradas, da forma incorrecta
e na altura imprópria. Ao cobarde falta-lhe confiança. Como tem
medo de tudo, é uma pessoa pessimista e sem esperança. O
corajoso, pelo contrário, é confiante e esperançoso. A pessoa
corajosa enfrenta o perigo com confiança e firmeza porque é correcto
faze-lo. E fá-lo porque aprecia a honra e recusa aquilo que é
vergonhoso. O soldado que recusa a fuga, perante um inimigo
superior em número, quando está em causa a defesa da sua cidade,
é o exemplo de coragem ao mais alto nível.
Na Magna Moralia, Aristóteles dedica todo o capitulo XX do livro
I à coragem. À semelhança do que escreveu na Ética a Nicómaco,
afirma que a coragem só se relaciona com alguns perigos e não com
todos. Quem não receia a doença não pode ser considerado corajoso,
mas sim louco. Ou mesmo se passa com quem não receia certos
fenómenos da natureza, como os terramotos ou as inundações. O
homem corajoso é "o que mantém o sangue frio nas circunstâncias
em que a maior parte ou a totalidade dos homens tem medo" (2).
E quais são as qualidades do homem de coragem? Em primeiro
lugar, só a experiência do perigo permite dizer que uma pessoa é
corajosa ou não: é por experiência, com efeito, que se sabe que, em
tal lugar, em tais circunstâncias é capaz de enfrentar o perigo com
sangue frio. Quem não possui experiência não pode ser chamado de
corajoso. As crianças, por falta de experiência, costumam manifestar
uma certa insensibilidade face ao perigo. Ninguém, de bom juízo, as
pode chamar de corajosas. Também não podemos dizer que é
corajoso aquele que enfrenta o perigo por paixão. Por exemplo, os
que estão apaixonados enfrentam qualquer perigo para estar com a
pessoa amada. Seria loucura chamar a essas pessoas de corajosas,
pois deixam de ser corajosas quando se esgota a sua paixão.
Na verdade, o homem corajoso é aquele que pratica actos de
coragem porque é correcto e é belo fazê-lo. É verdade que a coragem
não prescinde de um certo impulso e de alguma paixão, mas é
necessário que o impulso parta da parte racional da alma. "Na
realidade, aquele que é possuído pela razão e enfrenta o perigo em
vista do bem, aquele que não tem medo nessas circunstâncias, pode
ser chamado o homem de coragem" (3). Ser corajoso não é a mesma
coisa que não ter medo. É ter medo, mas, ainda assim, aguentar
firme, porque é correcto e belo aguentar. Ser corajoso não é,
também, ser capaz de enfrentar os perigos que estão longínquos ou
que não estão para breve. É ser capaz de aguentar e suportar os
perigos que estão próximos e que estão a chegar (4).

quinta-feira, novembro 07, 2019

Art. 8 — Se Deus entra na composição dos outros seres. Suma Teológica

Art. 8 — Se Deus entra na composição dos outros seres.
(I Sent., dist. 8, q. 1, a. 2; Cont. Gent., I, 17, 26, 27; III, 51; de Pot., q. 6, a. 6; De Verit., q. 21, a. 4)
O oitavo discute-se assim. — Parece que Deus entra na composição dos outros seres.
1. — Pois, Dionísio diz: Ser de todas as coisas é o que, além de existir, é a divindade. Ora, tal ser entra na
composição do ser individual. Logo, Deus entra na composição dos outros seres.
2. Demais. — Deus é forma, como o diz Agostinho: O verbo de Deus (que é Deus) é forma não
informada. Ora, a forma faz parte do composto. Logo, Deus é parte dos seres compostos.
3. Demais. — Coisas que existem e de nenhum modo diferem são idênticas. Ora, Deus e a matéria
prima, em nada diferindo entre si, são absolutamente idênticos. Mas, como a matéria prima entra na
composição de todos os seres, o mesmo há de dar-se com Deus. — Prova da média. Seres diferentes
hão de diferir por certas diferenças; logo, hão de necessariamente ser compostos. Ora, Deus e a matéria
prima são absolutamente simples; portanto, de nenhum modo diferem.
Mas, em contrário, Dionísio: Não há nele (em Deus) contacto nem qualquer comunhão por onde vá de
mistura com partes.
SOLUÇÃO. — Três erros se cometeram neste assunto. Uns ensinaram ser Deus a alma do mundo, como
se lê em Agostinho; e a ele se reduzem os que disseram ser Deus a alma do primeiro céu. — Outros,
porém, afirmaram ser ele o principio formal de todas as coisas, e tal se diz ter sido a opinião dos
Almarianos. — E o terceiro erro foi o de Davi de Dinant, concebendo estultissimamente Deus como
matéria prima. — Ora, todas estas doutrinas são falsas, pois de nenhum modo é possível que Deus entre
na composição de qualquer ser, nem como princípio formal, nem como material. — Primeiro, porque,
consoante ficou dito, Deus é a causa eficiente primeira. Ora, a causa eficiente não coincide
numericamente com a forma de seu efeito, mas só especificamente; assim, um homem gera outro. A
matéria, porém, não coincide com a causa eficiente, nem numérica nem especificamente, pois é
potencial, e esta atual. — Segundo, porque sendo Deus a causa eficiente primeira, é-lhe próprio,
primária e essencialmente o agir. Ora, o que faz parte da composição de um ser não é agente primário e
essencial; pois é, antes, o composto que age. Assim, não é a mão que age, mas, o homem, por meio
dela; e o fogo aquece pelo calor. Logo, Deus não pode fazer parte de nenhum composto. — Terceiro,
porque nenhuma parte do composto pode ser, absolutamente, a primeira entre os seres; nem,
portanto, a matéria e a forma que são as partes primeiras dos compostos. Pois, aquela é potencial, e a
potência é, em si mesma, posterior ao ato, como do sobredito resulta. A forma, por seu lado, como
parte do composto, é participada. Ora, como o participante é posterior ao ser que existe por essência,
assim também o é o próprio participado. P. ex., o fogo, matéria ígnea, é posterior, ao que é fogo por
essência. Ora, já demonstramos que Deus é o ser absolutamente primeiro.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A divindade é chamada ser de todos os seres, efetiva e
exemplarmente, e não, por essência.
RESPOSTA A SEGUNDA. — O verbo é forma exemplar; mas não é forma como parte de um composto.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os seres simples, ao contrário dos compostos, não diferem entre si senão
pelo que são. Assim, o homem e o cavalo diferem entre si, por ser aquele racional e este irracional; mas
essas diferenças não mais diferem entre si, por outras. Por onde, em rigor de expressão, não se dirá
propriamente — diferem, mas — são diversos. Pois, segundo o Filósofo, a palavra — diverso — se
emprega em sentido absoluto; ao passo que todo ser diferente de outro, difere por alguma coisa. Por
isso, rigorosamente falando, a matéria prima e Deus não diferem, mas são diversos entre si. Donde, não
se segue que sejam idênticos.

sexta-feira, outubro 25, 2019

Art. 6 — Se em Deus há acidentes.

Art. 6 — Se em Deus há acidentes.
(I Sent., dist. 8, q. 4, a. 3; Cont. Gent. I, 23; De Pot., q. 7, a. 4; Compend. Theol., c. 23.)
O sexto discute-se assim. Parece que em Deus há acidentes.
1. — Pois, a substância em nenhum ser é acidente. Ora, o que num é acidente não pode ser substância
em outro. Assim, prova-se que o calor, sendo acidente em outros seres, não pode ser a forma
substancial do fogo. Ora, a sabedoria, a virtude e qualidades semelhantes, que são acidentes em nós,
atribuem-se a Deus. Logo, há nele acidentes.
2. Demais. — Em cada gênero há um primeiro termo. Ora, muitos são os gêneros de acidentes. Se,
portanto, os termos primeiros desses gêneros não existem em Deus, haverá muitos seres primeiros
além de Deus, o que é inadmissível.
Mas, em contrário, todo acidente existe num sujeito. Ora, Deus não pode ser sujeito, porque não pode
sê-lo a forma simples, como diz Boécio. Logo, não há nele acidentes.
SOLUÇÃO. — Do que dissemos, claramente resulta que, em Deus, não pode haver acidentes. —
Primeiro, porque o sujeito está para o acidente como a potência para o ato; pois, em relação ao
acidente, o sujeito é, de certo modo, atual. Ora, em Deus não há absolutamente nada de potencial,
conforme se conclui do que já dissemos.
Segundo, porque Deus é o seu ser. Ora, como diz Boécio, embora o que existe seja susceptível de
acréscimo, contudo, o ser em si de nenhum modo o é. Assim, um corpo cálido pode ter algo de estranho
à calidez, como a brancura; mas, no calor mesmo, nada mais há além dele próprio.
Terceiro, porque tudo o que existe por si mesmo é anterior ao que tem existência acidental. Donde,
sendo Deus o ser absolutamente primeiro, nada pode ter de acidental; nem mesmo os acidentes
próprios, — como o de risível, no homem — podem nele existir. Porque todos os acidentes são
causados pelos princípios do sujeito, e, em Deus, causa primeira, nada pode ser causado. Donde se
conclui, que em Deus, não há nenhum acidente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A virtude e a sabedoria não se atribuem univocamente a
Deus e a nós, como a seguir se dirá. — Donde se não segue que os acidentes existam em Deus como em
nós.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Sendo a substância anterior aos acidentes, os princípios destes se reduzem
aos daquela, como ao que lhes é anterior. Mas, para que todos os seres dependam de Deus, não é
necessário que ele seja o primeiro no gênero da substância, senão, o primeiro, fora de todo gênero,
relativamente ao ser total.


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Suma Teológica

quarta-feira, setembro 11, 2019

O bem e o mal segundo Olívio Dutra. Olavo de Carvalho

O bem e o mal segundo Olívio Dutra
Olavo de Carvalho

7 de abril de 2000

Um empresário é um sujeito que ganha a vida organizando a atividade econômica. Ele acumula um capital, investe, ganha, paga suas dívidas para com os fornecedores, os empregados e o Estado, e no fim, se todo dá certo, tem um lucro. A quase totalidade do lucro é reinvestida no mesmo ou em outros negócios. Uma parte ínfima ele pode gastar em benefício próprio e da família. Se seu negócio é muito, muito próspero, mesmo essa parte ínfima basta para que ele compre mansões, iates, jatinhos e jatões, carros de luxo, cavalos de raça, e tenha, se é do seu gosto, múltiplas amantes. Em geral ele se contenta com muito menos.

Um político de esquerda é um sujeito que ganha a vida tentando jogar os empregados contra os empregadores. Ele mostra aos operários os aviões, os cavalos de raça e os carros de luxo do patrão e grita: “É roubo!” No começo ele faz isso de graça. É um investimento. Assim como o empresário investe dinheiro, ele investe insultos, gestos, caretas de indignação, apelos à guilhotina. Em troca, dão-lhe dinheiro. Ele vive disso. Quando alcança o sucesso, pode dispor de mansões, iates, jatinhos e jatões, carros de luxo, cavalos de raça e amantes em quantidade não inferior às do mais próspero capitalista.

Tanto a atividade do empresário quanto a do político de esquerda pode ser exercida de maneira honesta ou desonesta. O empresário pode dar golpes em seus fornecedores, vender produtos fraudados, sonegar o pagamento devido aos operários, ou então pode pagar tudo direitinho e vender produtos bons. Do mesmo modo, o político de esquerda pode desviar dinheiro público, utilizar-se indevidamente de imóveis do Estado, possuir sob ameaça aterrorizadas empregadinhas domésticas como o fazia Mao-tsé-tung. Ou então pode fazer tudo dentro da lei que ele próprio instaurou e ser incorruptível como Robespierre.

A diferença é a seguinte: da atividade do empresário, mesmo o mais desonesto, resultam sempre uma ativação da economia, uma elevação da produtividade, a expansão dos empregos. Esses resultados podem vir em quantidade grande ou pequena, mas têm de vir necessariamente, pela simples razão de que “empresa” consiste em produzi-los e em nada mais.

Da atividade do político de esquerda, mesmo o mais honesto, resultam sempre um aumento do ódio entre as classes, o crescimento do aparato estatal que terá de ser sustentado pelos padrões com dinheiro extraído aos empregados e consumidores, a politização geral da linguagem que transformará todos os debates em confrontos de força e, em última instância, desembocará num morticínio redentor. Esses resultados também podem vir em quantidades grandes ou pequenas, mas virão necessariamente, pois “política de esquerda” consiste em produzi-los e em nada mais.

Um empresário, honesto ou desonesto, está no auge do sucesso quando pode, sem prejuízo de seus investimentos, comprar mansões, iates, carros de luxo, jatinhos, jatões etc. Ele alcança isso quando se torna um mega-empresário. Para chegar a esse ponto, ele tem de deixar em seu rastro fábricas, bancos, plantações, jornais, canais de TV e mil e um outros negócios dos quais vivem e prosperam milhares de pessoas.

Em político de esquerda, honesto ou desonesto, está no auge do sucesso quando destruiu toda oposição às suas idéias e comanda uma sociedade fielmente disposta a realizá-las. Ele alcança isso quando se torna o chefe de uma revolução vitoriosa. Para chegar a esse ponto, ele tem de deixar em seu rastro milhares ou milhões de cadáveres, edifícios destruídos, plantações queimadas, órfãos e viúvas vagando pelas ruas, fome, miséria e desespero.

O governador Olívio Dutra acha que é imoral ser empresário e que é lindo ser um político de esquerda.

Ele não tem maturidade intelectual suficiente para perceber que o sucesso final de um empresário, mesmo desonesto, traz sempre mais bem do que mal, e que o sucesso final de um político de esquerda, mesmo inflexivelmente honesto como ele, produz uma quantidade de mal acima do que qualquer bem poderá jamais reparar.

O governador Olívio Dutra, como qualquer outro político de esquerda, tem uma consciência moral deformada por um uso falso da linguagem. Ele ouviu dizer na infância: “Lucro egoísta”, “justiça social”, e impregnou-se de tal modo desses símbolos verbais do mal e do bem, que pôs sua vida a serviço do que lhe parece uma nobre causa: combater as coisas que têm nomes feios e louvar as que têm nomes bonitos. Uma coisa que criou as nações mais prósperas e livres da Terra deve ser muito má, pois tem o nome hediondo de “lucro egoísta”. Uma coisa que matou cem milhões de bodes expiatórios e reduziu à escravidão e à miséria um bilhão e meio de outros inocentes deve ser ótima, pois leva o belo nome de “justiça social”.

Romper a unidade mágica de nomes e coisas é uma operação dolorosa. Custa vergonhas e humilhações à mente altiva. Mas é o preço da maturidade. No julgamento são do homem maduro – o “spoudaios” –, via Aristóteles a única esperança de um governo justo, do predomínio, ainda que relativo e precário, do bem sobre o mal. Não existe bem onde não existe amor à verdade, e não existe amor à verdade onde uma mente obstinada se apega ao instinto pueril de julgar as coisas pelos nomes que ostentam.

O problema do governador Olívio Dutra, assim como de milhares que pensam como ele, já foi diagnosticado por Jesus Cristo dois milênios atrás: “Na verdade, amais o que devíeis odiar e odiais o que devíeis amar.” Eles pecaram contra o Espírito, protegendo-se por trás da belas palavras contra a visão das realidades feias, e receberam como castigo exatamente aquilo que pediam: a cegueira forçada tornou-se espontânea, e hoje a sua moralidade invertida lhes parece a atitude mais natural do mundo, a única maneira possível de julgar as coisas — o caminho do bem, fora do qual tudo é perdição e “lucro egoísta”.

Não creio sequer que valha a pena rezar para que despertem. Eles não despertarão enquanto não enviarem milhões de seres humanos para o sono eterno.

segunda-feira, setembro 09, 2019

ARISTÓTELES: OS QUATRO DISCURSOS

Capítulo I de Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Rio, Topbooks, 1997)
Olavo de Carvaalho



Há nas obras de Aristóteles uma idéia medular, que escapou à percepção de quase todos os seus leitores e comentaristas, da Antigüidade até hoje. Mesmo aqueles que a perceberam — e foram apenas dois, que eu saiba, ao longo dos milênios — limitaram-se a anotá-la de passagem, sem lhe atribuir explicitamente uma importância decisiva para a compreensão da filosofia de Aristóteles2. No entanto, ela é a chave mesma dessa compreensão, se por compreensão se entende o ato de captar a unidade do pensamento de um homem desde suas próprias intenções e valores, em vez de julgá-lo de fora; ato que implica respeitar cuidadosamente o inexpresso e o subentendido, em vez de sufocá-lo na idolatria do "texto" coisificado, túmulo do pensamento.

A essa idéia denomino Teoria dos Quatro Discursos. Pode ser resumida em uma frase: o discurso humano é uma potência única, que se atualiza de quatro maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a analítica (lógica).

Dita assim, a idéia não parece muito notável. Mas, se nos ocorre que os nomes dessas quatro modalidades de discurso são também nomes de quatro ciências, vemos que segundo essa perspectiva a Poética, a Retórica, a Dialética e a Lógica, estudando modalidades de uma potência única, constituem também variantes de uma ciência única. A diversificação mesma em quatro ciências subordinadas tem de assentar-se na razão da unidade do objeto que enfocam, sob pena de falharem à regra aristotélica das divisões. E isto significa que os princípios de cada uma delas pressupõem a existência de princípios comuns que as subordinem, isto é, que se apliquem por igual a campos tão diferentes entre si como a demonstração científica e a construção do enredo trágico nas peças teatrais. Então a idéia que acabo de atribuir a Aristóteles já começa a nos parecer estranha, surpreendente, extravagante. E as duas perguntas que ela nos sugere de imediato são: Terá Aristóteles realmente pensado assim? E, se pensou, pensou com razão? A questão biparte-se portanto numa investigação histórico-filológica e numa crítica filosófica. Não poderei, nas dimensões da presente comunicação, realizar a contento nem uma, nem a outra. Em compensação, posso indagar as razões da estranheza.

O espanto que a idéia dos Quatro Discursos provoca a um primeiro contato advém de um costume arraigado da nossa cultura, de encarar a linguagem poética e a linguagem lógica ou científica como universos separados e distantes, regidos por conjuntos de leis incomensuráveis entre si. Desde que um decreto de Luís XIV separou em edifícios diversos as "Letras" e as "Ciências"3, o fosso entre a imaginação poética e a razão matemática não cessou de alargar-se, até se consagrar como uma espécie de lei constitutiva do espírito humano. Evoluindo como paralelas que ora se atraem ora se repelem mas jamais se tocam, as duas culturas, como as chamou C. P. Snow, consolidaram-se em universos estanques, cada qual incompreensível ao outro. Gaston Bachelard, poeta doublé de matemático, imaginou poder descrever esses dois conjuntos de leis como conteúdos de esferas radicalmente separadas, cada qual igualmente válido dentro de seus limites e em seus próprios termos, entre os quais o homem transita como do sono para a vigília, desligando-se de um para entrar na outra, e vice-versa4: a linguagem dos sonhos não contesta a das equações, nem esta penetra no mundo daquela. Tão funda foi a separação, que alguns desejaram encontrar para ela um fundamento anatômico na teoria dos dois hemisférios cerebrais, um criativo e poético, outro racional e ordenador, e acreditaram ver uma correspondência entre essas divisões e a dupla yin-yang da cosmologia chinesa5. Mais ainda, julgaram descobrir no predomínio exclusivo de um desses hemisférios a causa dos males do homem Ocidental. Uma visão um tanto mistificada do ideografismo chinês, divulgada nos meios pedantes por Ezra Pound6 (, deu a essa teoria um respaldo literário mais do que suficiente para compensar sua carência de fundamentos científicos. A ideologia da "Nova Era" consagrou-a enfim como um dos pilares da sabedoria7.

Nesse quadro, o velho Aristóteles posava, junto com o nefando Descartes, como o protótipo mesmo do bedel racionalista que, de régua em punho, mantinha sob severa repressão o nosso chinês interior. O ouvinte imbuído de tais crenças não pode mesmo receber senão com indignado espanto a idéia que atribuo a Aristóteles. Ela apresenta como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumavam encarar como um guardião da esquizofrenia. Ela contesta uma imagem estereotipada que o tempo e a cultura de almanaque consagraram como uma verdade adquirida. Ela remexe velhas feridas, cicatrizadas por uma longa sedimentação de preconceitos.

A resistência é, pois, um fato consumado. Resta enfrentá-la, provando, primeiro, que a idéia é efetivamente de Aristóteles; segundo, que é uma excelente idéia, digna de ser retomada, com humildade, por uma civilização que se apressou em aposentar os ensinamentos do seu velho mestre antes de os haver examinado bem. Não poderei aqui senão indicar por alto as direções onde devem ser buscadas essas duas demonstrações.

Aristóteles escreveu uma Poética, uma Retórica, um livro de Dialética (os Tópicos) e dois tratados de Lógica (Analíticas I e II), além de duas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral (Categorias e Da Interpretação). Todas essas obras andaram praticamente desaparecidas, como as demais de Aristóteles, até o século I a. C., quando um certo Andrônico de Rodes promoveu uma edição de conjunto, na qual se baseiam até hoje nossos conhecimentos de Aristóteles.

Como todo editor póstumo, Andrônico teve de colocar alguma ordem nos manuscritos. Decidiu tomar como fundamento dessa ordem o critério da divisão das ciências em introdutórias (ou lógicas), teoréticas, práticas e técnicas (ou poiêticas, como dizem alguns). Esta divisão tinha o mérito de ser do próprio Aristóteles. Mas, como observou com argúcia Octave Hamelin8, não há nenhum motivo para supor que a divisão das obras de um filósofo em volumes deva corresponder taco-a-taco à sua concepção das divisões do saber. Andrônico deu essa correspondência por pressuposta, e agrupou os manuscritos, portanto, nas quatro divisões. Mas, faltando outras obras que pudessem entrar sob o rótulo técnicas, teve de meter lá a Retórica e a Poética, desligando-as das demais obras sobre a teoria do discurso, que foram compor a unidade aparentemente fechada do Organon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias.

Somada a outras circunstâncias, essa casualidade editorial foi pródiga em conseqüências, que se multiplicam até hoje. Em primeiro lugar, a Retórica — nome de uma ciência abominada pelos filósofos, que nela viam o emblema mesmo de seus principais adversários, os sofistas — não suscitou, desde sua primeira edição por Andrônico, o menor interesse filosófico. Foi lida apenas nas escolas de retórica, as quais, para piorar as coisas, entravam então numa decadência acelerada pelo fato de que a extinção da democracia, suprimindo a necessidade de oradores, tirava a razão de ser da arte retórica, encerrando-a na redoma de um formalismo narcisista9. Logo em seguida, a Poética, por sua vez, sumiu de circulação, para só reaparecer no século XVI10. Estes dois acontecimentos parecem fortuitos e desimportantes. Mas, somados, dão como resultado nada menos que o seguinte: todo o aristotelismo ocidental, que, de início lentamente, mas crescendo em velocidade a partir do século XI, foi se formando no período que vai desde a véspera da Era Cristã até o Renascimento, ignorou por completo a Retórica e a Poética. Como nossa imagem de Aristóteles ainda é uma herança desse período (já que a redescoberta da Poética no Renascimento não despertou interesse senão dos poetas e filólogos, sem tocar o público filosófico), até hoje o que chamamos de Aristóteles, para louvá-lo ou para maldizê-lo, não é o homem de carne e osso, mas um esquema simplificado, montado durante os séculos que ignoravam duas das obras dele. Em especial, nossa visão da teoria aristotélica do pensamento discursivo é baseada exclusivamente na analítica e na tópica, isto é, na lógica e na dialética, amputadas da base que Aristóteles tinha construído para elas na poética e na retórica11.

Mas a mutilação não parou aí. Do edifício da teoria do discurso, haviam sobrado só os dois andares superiores — a dialética e a lógica —, boiando sem alicerces no ar como o quarto do poeta na "Última canção do beco" de Manuel Bandeira. Não demorou a que o terceiro andar fosse também suprimido: a dialética, considerada ciência menor, já que lidava somente com a demonstração provável, foi preterida em benefício da lógica analítica, consagrada desde a Idade Média como a chave mesma do pensamento de Aristóteles. A imagem de um Aristóteles constituído de "lógica formal + sensualismo cognitivo + teologia do Primeiro Motor Imóvel" consolidou-se como verdade histórica jamais contestada.

Mesmo o prodigioso avanço dos estudos biográficos e filológicos inaugurado por Werner Jaeger12 não mudou isso. Jaeger apenas derrubou o estereótipo de um Aristóteles fixo e nascido pronto, para substituir-lhe a imagem vivente de um pensador que evolui no tempo em direção à maturidade das suas idéias. Mas o produto final da evolução não era, sob o aspecto aqui abordado, muito diferente do sistema consagrado pela Idade Média: sobretudo a dialética seria nele um resíduo platônico, absorvido e superado na lógica analítica.

Mas essa visão é contestada por alguns fatos. O primeiro, ressaltado por Éric Weil, é que o inventor da lógica analítica jamais se utiliza dela em seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente13. Em segundo lugar, o próprio Aristóteles insiste em que a lógica não traz conhecimento, mas serve apenas para facilitar a verificação dos conhecimentos já adquiridos, confrontando-os com os princípios que os fundamentam, para ver se não os contradizem. Quando não possuímos os princípios, a única maneira de buscá-los é a investigação dialética que, pelo confronto das hipóteses contraditórias, leva a uma espécie de iluminação intuitiva que põe em evidência esses princípios. A dialética em Aristóteles é, portanto, segundo Weil, uma logica inventionis, ou lógica da descoberta: o verdadeiro método científico, do qual a lógica formal é apenas um complemento e um meio de verificação14.

Mas a oportuna intervenção de Weil, se desfez a lenda de uma total hegemonia da lógica analítica no sistema de Aristóteles, deixou de lado a questão da retórica. O mundo acadêmico do século XX ainda subscreve a opinião de Sir David Ross, que por sua vez segue Andrônico: a Retórica tem "um propósito puramente prático"; "não constitui um trabalho teórico" e sim "um manual para o orador"15. Mas à Poética, por seu lado, Ross atribui um valor teórico efetivo, sem reparar que, se Andrônico errou neste caso, pode também ter se enganado quanto à Retórica. Afinal, desde o momento em que foi redescoberta, a Poética também foi encarada sobretudo como "um manual prático" e interessou antes aos literatos do que aos filósofos16. De outro lado, o próprio livro dos Tópicos poderia ser visto como "manual técnico" ou pelo menos "prático" — pois na Academia a dialética funcionava exatamente como tal: era o conjunto das normas práticas do debate acadêmico. Enfim, a classificação de Andrônico, uma vez seguida ao pé da letra, resulta em infindáveis confusões, as quais se podem resolver todas de uma vez mediante a admissão da seguinte hipótese, por mais perturbadora que seja: como ciências do discurso, a Poética e a Retórica fazem parte do Organon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias, e não são portanto nem teoréticas nem práticas nem técnicas. Este é o núcleo da interpretação que defendo. Ela implica, porém, uma profunda revisão das idéias tradicionais e correntes sobre a ciência aristotélica do discurso. Esta revisão, por sua vez, arrisca ter conseqüências de grande porte para a nossa visão da linguagem e da cultura em geral. Reclassificar as obras de um grande filósofo pode parecer um inocente empreendimento de eruditos, mas é como mudar de lugar os pilares de um edifício. Pode exigir a demolição de muitas construções em torno.

As razões que alego para justificar essa mudança são as seguintes:

l. As quatro ciências do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria). As quatro modalidades de discurso caracterizam-se por seus respectivos níveis de credibilidade:

(a) O discurso poético versa sobre o possível (dunatoV17, dínatos), dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume (eikastikoV, eikástikos, "presumível"; eikasia, eikasia, "imagem", "representação").

(b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil (piqanoV, pithános) e por meta a produção de uma crença firme (pistiV, pístis) que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão (peiqo, peitho), que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como resultado uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas.

(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades (dia, diá = "através de" e indica também duplicidade, divisão). Por isto a dialética é também chamada peirástica, da raiz peirá (peira = "prova", "experiência", de onde vêm peirasmoV, peirasmos, "tentação", e as nossas palavras empiria, empirismo, experiência etc., mas também, através de peirateV, peirates, "pirata": o símbolo mesmo da vida aventureira, da viagem sem rumo predeterminado). O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da racionalidade e da informação acurada.

(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa (apodeixiV, apodêixis, "prova indestrutível") da veracidade das conclusões.

É visível que há aí uma escala de credibilidade crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o provável e finalmente para o certo ou verdadeiro. As palavras mesmas usadas por Aristóteles para caracterizar os objetivos de cada discurso evidenciam essa gradação: há, portanto, entre os quatro discursos, menos uma diferença de natureza que de grau.

Possibilidade, verossimilhança, probabilidade razoável e certeza apodíctica são, pois, os conceitos-chave sobre os quais se erguem as quatro ciências respectivas: a Poética estuda os meios pelos quais o discurso poético abre à imaginação o reino do possível; a Retórica, os meios pelos quais o discurso retórico induz a vontade do ouvinte a admitir uma crença; a Dialética, aqueles pelos quais o discurso dialético averigua a razoabilidade das crenças admitidas, e, finalmente, a Lógica ou Analítica estuda os meios da demonstração apodíctica, ou certeza científica. Ora, aí os quatro conceitos básicos são relativos uns aos outros: não se concebe o verossímil fora do possível, nem este sem confronto com o razoável, e assim por diante. A conseqüência disto é tão óbvia que chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha percebido: as quatro ciências são inseparáveis; tomadas isoladamente, não fazem nenhum sentido. O que as define e diferencia não são quatro conjuntos isoláveis de caracteres formais, porém quatro possíveis atitudes humanas ante o discurso, quatro motivos humanos para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a imaginação à imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, para examinar criticamente a base das crenças que fundamentam suas resoluções, ou para explorar as conseqüências e prolongamentos de juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros, construindo com eles o edifício do saber científico. Um discurso é lógico ou dialético, poético ou retórico, não em si mesmo e por sua mera estrutura interna, mas pelo objetivo a que tende em seu conjunto, pelo propósito humano que visa a realizar. Daí que os quatro sejam distinguíveis, mas não isoláveis: cada um deles só é o que é quando considerado no contexto da cultura, como expressão de intuitos humanos. A idéia moderna de delimitar uma linguagem "poética em si" ou "lógica em si" pareceria aos olhos de Aristóteles uma substancialização absurda, pior ainda: uma coisificação alienante18. Ele ainda não estava contaminado pela esquizofrenia que hoje se tornou o estado normal da cultura.

2. Mas Aristóteles vai mais longe: ele assinala a diferente disposição psicológica correspondente ao ouvinte de cada um dos quatro discursos, e as quatro disposições formam também, da maneira mais patente, uma gradação:

(a) Ao ouvinte do discurso poético cabe afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que "não é verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil", para captar a verdade universal que pode estar sugerida mesmo por uma narrativa aparentemente inverossímil19. Aristóteles, em suma, antecipa a suspension of disbelief de que falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério de verossimilhança mais flexível, o leitor (ou espectador) admite que as desventuras do herói trágico poderiam ter acontecido a ele mesmo ou a qualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas permanentes.

(b) Na retórica antiga, o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um voto, uma sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda a tradição retórica, admite três tipos de discursos retóricos: o discurso forense, o discurso deliberativo e o discurso epidíctico, ou de louvor e censura (a um personagem, a uma obra, etc.)20. Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir: sobre a culpa ou inocência de um réu, sobre a utilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto, etc., sobre os méritos ou deméritos de alguém ou de algo. Ele é, portanto, consultado como autoridade: tem o poder de decidir. Se no ouvinte do discurso poético era importante que a imaginação tomasse as rédeas da mente, para levá-la ao mundo do possível num vôo do qual não se esperava que decorresse nenhuma conseqüência prática imediata, aqui é a vontade que ouve e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos21.

(c) Já o ouvinte do discurso dialético é, interiormente ao menos, um participante do processo dialético. Este não visa a uma decisão imediata, mas a uma aproximação da verdade, aproximação que pode ser lenta, progressiva, difícil, tortuosa, e nem sempre chega a resultados satisfatórios. Neste ouvinte, o impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, reprimido mesmo: o dialético não deseja persuadir, como o retórico, mas chegar a uma conclusão que idealmente deva ser admitida como razoável por ambas as partes contendoras. Para tanto, ele tem de refrear o desejo de vencer, dispondo-se humildemente a mudar de opinião se os argumentos do adversário forem mais razoáveis. O dialético não defende um partido, mas investiga uma hipótese. Ora, esta investigação só é possível quando ambos os participantes do diálogo conhecem e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais a questão será julgada, e quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da demonstração dialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se preciso, de resignação autocrítica. Aristóteles adverte expressamente os discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialéticos com quem desconheça os princípios da ciência: seria expor-se a objeções de mera retórica, prostituindo a filosofia22.

(d) Finalmente, no plano da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamente verídicas e procedendo rigorosamente pela dedução silogística, não tem como deixar de ser certa. O discurso analítico é o monólogo do mestre: ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Caso falhe a demonstração, o assunto volta à discussão dialética23.

De discurso em discurso, há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível: da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceitas na praxis coletiva; porém, da massa das crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem dialética; e, destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios cientificamente válidos. A esfera própria de cada uma das quatro ciências é portanto delimitada pela contigüidade da antecedente e da subseqüente. Dispostas em círculos concêntricos, elas formam o mapeamento completo das comunicações entre os homens civilizados, a esfera do saber racional possível24.

3. Finalmente, ambas as escalas são exigidas pela teoria aristotélica do conhecimento. Para Aristóteles, o conhecimento começa pelos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação ou fantasia (fantasia), que os agrupa em imagens (eikoi, eikoi, em latim species, speciei), segundo suas semelhanças. É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios. Dos sentidos ao raciocínio abstrato, há uma dupla ponte a ser atravessada: a fantasia e a chamada simples apreensão, que capta as noções isoladas. Não existe salto: sem a intermediação da fantasia e da simples apreensão, não se chega ao estrato superior da racionalidade científica. Há uma perfeita homologia estrutural entre esta descrição aristotélica do processo cognitivo e a Teoria dos Quatro Discursos. Não poderia mesmo ser de outro modo: se o indivíduo humano não chega ao conhecimento racional sem passar pela fantasia e pela simples apreensão, como poderia a coletividade — seja a polis ou o círculo menor dos estudiosos — chegar à certeza científica sem o concurso preliminar e sucessivo da imaginação poética, da vontade organizadora que se expressa na retórica e da triagem dialética empreendida pela discussão filosófica?

Retórica e Poética uma vez retiradas do exílio "técnico" ou "poiêtico" em que as pusera Andrônico e restauradas na sua condição de ciências filosóficas, a unidade das ciências do discurso leva-nos ainda a uma verificação surpreendente: há embutida nela toda uma filosofia aristotélica da cultura como expressão integral do logos. Nessa filosofia, a razão científica surge como o fruto supremo de uma árvore que tem como raiz a imaginação poética, plantada no solo da natureza sensível. E como a natureza sensível não é para Aristóteles apenas uma "exterioridade" irracional e hostil, mas a expressão materializada do Logos divino, a cultura, elevando-se do solo mitopoético até os cumes do conhecimento científico, surge aí como a tradução humanizada dessa Razão divina, espelhada em miniatura na autoconsciência do filósofo. Aristóteles compara, com efeito, a reflexão filosófica à atividade autocognoscitiva de um Deus que consiste, fundamentalmente, em autoconsciência. O cume da reflexão filosófica, que coroa o edifício da cultura, é, com efeito, gnosis gnoseos, o conhecimento do conhecimento. Ora, este se perfaz tão somente no instante em que a reflexão abarca recapitulativamente a sua trajetória completa, isto é, no momento em que, tendo alcançado a esfera da razão científica, ela compreende a unidade dos quatro discursos através dos quais se elevou progressivamente até esse ponto. Aí ela está preparada para passar da ciência ou filosofia à sabedoria, para ingressar na Metafísica, que Aristóteles, como bem frisou Pierre Aubenque, prepara mas não realiza por completo, já que o reino dela não é deste mundo25. A Teoria dos Quatro Discursos é, nesse sentido, o começo e o término da filosofia de Aristóteles. Para além dela, não há mais saber propriamente dito: há somente a "ciência que se busca", a aspiração do conhecimento supremo, da sophia cuja posse assinalaria ao mesmo tempo a realização e o fim da filosofia.


NOTAS

Em vez de reproduzir exatamente o texto da primeira edição, este capítulo segue a versão ligeiramente corrigida que, sob o título "A estrutura do Organon e a unidade das ciências do discurso em Aristóteles", apresentei no V Congresso Brasileiro de Filosofia, em São Paulo, 6 de setembro de 1995 (seção de Lógica e Filosofia da Ciência). Voltar
Esses dois foram Avicena e Sto. Tomás de Aquino. Avicena (Abu 'Ali el-Hussein ibn Abdallah ibn Sina, 375-428 H. / 985-1036 d.C.) afirma taxativamente, na sua obra Nadjat ("A Salvação"), a unidade das quatro ciências, sob o conceito geral de "lógica". Segundo o Barão Carra de Vaux, isto "mostra quanto era vasta a idéia que ele fazia desta arte", em cujo objeto fizera entrar "o estudo de todos os diversos graus de persuasão, desde a demonstração rigorosa até à sugestão poética" (cf. Baron Carra de Vaux, Avicenne, Paris, Alcan, 1900, pp. 160-161). Sto. Tomás de Aquino menciona também, nos Comentários às Segundas Analíticas, I, 1.I, nº 1-6, os quatro graus da lógica, dos quais, provavelmente tomou conhecimento através de Avicena, mas atribuindo-lhes o sentido unilateral de uma hierarquia descendente que vai do mais certo (analítico) ao mais incerto (poético) e dando a entender que, da Tópica "para baixo", estamos lidando apenas com progressivas formas do erro ou pelo menos do conhecimento deficiente. Isto não coincide exatamente com a concepção de Avicena nem com aquela que apresento neste livro, e que me parece ser a do próprio Aristóteles, segundo a qual não há propriamente uma hierarquia de valor entre os quatro argumentos, mas sim uma diferença de funções articuladas entre si e todas igualmente necessárias à perfeição do conhecimento. De outro lado, é certo que Sto. Tomás, como todo o Ocidente medieval, não teve acesso direto ao texto da Poética. Se tivesse, seria quase impossível que visse na obra poética apenas a representação de algo "como agradável ou repugnante" (loc. cit., nº 6), sem meditar mais profundamente sobre o que diz Aristóteles quanto ao valor filosófico da poesia (Poética, 1451 a). De qualquer modo, é um feito admirável do Aquinatense o haver percebido a unidade das quatro ciências lógicas, raciocinando, como o fez, desde fontes de segunda mão. Voltar
V. Georges Gusdorf, Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale, t. I, De l'Histoire des Sciences à l'Histoire de la Pensée, Paris, Payot, 1966, pp. 9-41. Voltar
A obra de Bachelard, refletindo o dualismo metódico do seu pensamento, divide-se em duas séries paralelas: de um lado, os trabalhos de filosofia das ciências, como Le Nouvel Esprit Scientifique, Le Rationalisme Appliqué, etc.; de outro, a série dedicada aos "quatro elementos" — La Psychanalyse du Feu, L'Air et les Songes, etc., onde o racionalista em férias exerce livremente o que chamava "o direito de sonhar". Bachelard parecia possuir um comutador mental que lhe permitia passar de um desses mundos ao outro, sem a menor tentação de lançar entre eles outra ponte que não a liberdade de acionar o comutador. Voltar
Para um exame crítico dessa teoria, v. Jerre Levy, "Right Brain, Left Brain: Fact and Fiction" (Psychology Today, may 1985, pp. 43 ss.). Voltar
Ezra Pound fez um barulho enorme em torno do ensaio de Ernest Fenollosa, The Chinese Characters as a Medium for Poetry (London, Stanley Nott, 1936), dando ao Ocidente a impressão de que a língua chinesa constituía um mundo fechado, regido por categorias de pensamento inacessíveis à compreensão Ocidental exceto mediante uma verdadeira torção do conceito mesmo de linguagem. O simbolismo chinês, no entanto, é bem mais parecido com o Ocidental do que imaginam os apreciadores de abismos culturais. Uma similaridade patente que tem escapado a essas pessoas é a que existe entre a estrutura do I Ching e a silogística de Aristóteles. Voltar
A crença na teoria dos dois hemisférios é comum a todos os teóricos e gurus da "Nova Era", como Marilyn Ferguson, Shirley MacLaine e Fritjof Capra. Sobre este último, v. meu livro A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, Instituto de Artes Liberais & Stella Caymmi Editora, 1994. O mais curioso desta teoria é que ela pretende vencer a esquizofrenia do homem Ocidental e começa por dar a ela um fundamento anatômico (afortunadamente, fictício). — É evidente, pelo que se verá a seguir, que não levo muito a sério as tentativas, tão meritórias no intuito quanto miseráveis nos resultados, de superar o dualismo mediante a mixórdia metodológica generalizada que admite como critérios de validade científica a persuasividade retórica e a efusão imaginativa (v. por exemplo Paul Feyerabend, Contra o Método, trad. Octanny S. da Motta e Leônidas Hegenberg, Rio, Francisco Alves, 1977). Voltar
"É talvez excessivo exigir que as obras de um autor correspondam ponto por ponto à classificação das ciências tal como a compreende esse autor." (Octave Hamelin, Le Système d'Aristote, publié par Léon Robin, 4e. éd., Paris, J. Vrin, 1985, p. 82.) Voltar
Refiro-me ao período da chamada "retórica escolar". V. Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, trad. Teodoro Cabral, Rio, INL, 1957, pp. 74 ss. Voltar
Isso torna ainda mais engraçada a trama d'O Nome da Rosa, de Umberto Eco, trama propositadamente impossível que o espectador desinformado toma como ficção verossímil: pois como poderia surgir uma disputa em torno da desaparecida Segunda Parte da Poética de Aristóteles, numa época que desconhecia até a Primeira? Voltar
No quadro medieval, o fenômeno que descrevo tem certamente alguma relação com uma estratificação social que colocava os sábios e filósofos, classe sacerdotal, acima dos poetas, classe de servidores da corte ou artistas de feira. O status inferior do poeta em relação aos sábios nota-se tanto na hierarquia social (veja-se o papel decisivo que no desenvolvimento literário medieval desempenharam os clerici vagantes, ou goliardos, todo um "proletariado eclesiástico" à margem das universidades), quanto na hierarquia das ciências mesmas: os estudos literários estavam rigorosamente fora do sistema educacional da escolástica, e as mais elevadas concepções filosóficas da Idade Média foram escritas num latim bastante grosseiro, sem que isto, na ocasião, suscitasse qualquer estranheza e muito menos reações de escândalo esteticista como as que viriam a eclodir no Renascimento. Cf., a propósito, Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, trad. Luísa Quintela, Lisboa, Estudios Cor, 1973, Cap. I § 7. Voltar
V. Werner Jaeger, Aristoteles. Bases para la Historia de su Desarrollo Intelectual, trad. José Gaos, México, Fondo de Cultura Económica, 1946 (o original alemão é de 1923). Voltar
Essa constatação fez surgir por sua vez a disputa entre os intérpretes que consideram Aristóteles um pensador sistemático (que parte sempre dos mesmos princípios gerais) e os que o enxergam como pensador aporético (que ataca os problemas um por um e vai subindo na direção do geral sem ter muita certeza de aonde vai chegar). A abordagem sugerida no presente trabalho tem, entre outras, a ambição de resolver essa disputa. V., adiante, Cap. VII. Voltar
V. Éric Weil, "La Place de la Logique dans la Pensée Aristotélicienne", em Éssais et Conférences, t. I, Philosophie, Paris, Vrin, 1991, pp. 43-80. Voltar
Sir David Ross, Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 280 (o original inglês é de 1923). Voltar
Desde a sua primeira tradução comentada (Francesco Robortelli, 1548), a Poética redescoberta vai moldar por dois séculos e meio os padrões do gosto literário, ao mesmo tempo que, no campo da Filosofia da Natureza, o aristotelismo recua, banido pelo avanço vitorioso da nova ciência de Galileu e Bacon, Newton e Descartes. Isto mostra, de um lado, a total separação entre o pensamento literário e a evolução filosófica e científica (separação característica do Ocidente moderno, e que se agravará no decorrer dos séculos); de outro, a indiferença dos filósofos pelo texto redescoberto. Sobre as raízes aristotélicas da estética do classicismo europeu, v. René Wellek, História da Crítica Moderna, trad, Lívio Xavier, São Paulo, Herder. t. I, Cap. I. Voltar
Por dificuldades técnicas de edição, omito aqui os acentos das palavras gregas. Voltar
Quatro fatos da história do pensamento contemporâneo fazem ressaltar a importância dessas observações. 1°) Todas as tentativas de isolar e definir por seus caracteres intrínsecos uma "linguagem poética", diferenciando-a materialmente da "linguagem lógica" e da "linguagem cotidiana" fracassaram redondamente. V., a respeito, Mary Louise Pratt, Toward a Speech Act Theory of Literary Discourse, Bloomington, Indiana University Press, 1977. 2°) De outro lado, desde Kurt Gödel é geralmente reconhecida a impossibilidade de extirpar do pensamento lógico todo resíduo intuitivo. 3)° Os estudos de Chaim Perelman (Traité de l’Argumentation. La Nouvelle Rhétorique, Bruxelles, Université Libre, 1978), Thomas S. Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions) e Paul Feyerabend (cit.) mostram, convergentemente, a impossibilidade de erradicar da prova científico-analítica todo elemento dialético e mesmo retórico. 4)° Ao mesmo tempo, a existência de algo mais que um mero paralelismo entre princípios estéticos (vale dizer, poéticos, em sentido lato) e lógico-dialéticos na cosmovisão medieval é fortemente enfatizada por Erwin Panofsky (Architecture Gothique et Pensée Scolastique, trad. Pierre Bourdieu, Paris, Éditions de Minuit, 1967). Esses fatos e muitos outros no mesmo sentido indicam mais que a conveniência, a urgência do estudo integrado dos quatro discursos. Voltar
V. Poética, 1451 a-b. Voltar
Sobre as três modalidades na tradição retórica, v. Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, trad. R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1972. Voltar
Retórica, 1358 a — 1360 a. Voltar
Tópicos, IX 12, 173 a 29 ss. Voltar
Entre a analítica e a dialética, "a diferença é, segundo Aristóteles, aquela que há entre o curso de ensinamento dado por um professor e a discussão realizada em comum, ou, para dizer de outro modo, a que há entre o monólogo e o diálogo científicos" (Éric Weil, op. cit., p. 64). Voltar
É quase impossível que Aristóteles, cientista natural com a mente repleta de analogias entre a esfera dos conceitos racionais e os fatos da ordem física, não reparasse no paralelismo — direto e inverso — entre os quatro discursos e os quatro elementos, diferenciados, eles também, pela escalaridade do mais denso para o mais sutil, em círculos concêntricos. Num curso proferido no IAL em 1988, inédito exceto numa série de apostilas sob o título geral de "Teoria dos Quatro Discursos", investiguei mais extensamente esse paralelismo, que aqui não cabe senão mencionar de passagem. Voltar
V. Pierre Aubenque, Le Problème de l'Être chez Aristote. Éssai sur la Problematique Aristotélicienne, Paris, P.U.F., 1962.