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terça-feira, junho 06, 2023

Mar Português – Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

quinta-feira, outubro 08, 2020

INSÓNIA. Fernando Pessoa

 Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


INSÓNIA

Não durmo, nem espero dormir.

Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,

E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,

Não posso escrever quando acordo de noite,

Não posso pensar quando acordo de noite —

Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,

E o meu sentimento é um pensamento vazio.

Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —

Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;

Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —

Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;

Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,

E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.

Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.

Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.

Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,

Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —

Versos a dizer que não tenho nada que dizer,

Versos a teimar em dizer isso,

Versos, versos, versos, versos, versos...

Tantos versos...

E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir

Sou uma sensação sem pessoa correspondente,

Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,

Salvo o necessário para sentir consciência,

Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.

Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!

Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...

Vem, inutilmente,

Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,

Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,

Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.

O meu cansaço entra pelo colchão dentro.

Doem-me as costas de não estar deitado de lado.

Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.

Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,

Não tenho energia para nada, para mais nada...

Só para estes versos, escritos no dia seguinte.

Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.

Paz em toda a Natureza.

A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.

Exactamente.

A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,

Costuma dizer-se isto.

A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,

Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.

Exactamente. Mas não durmo.

segunda-feira, junho 08, 2020

O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS. Fernando Pessoa. Poesia

O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS
Fernando Pessoa

O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, 1911-12)

terça-feira, abril 21, 2020

O rei de Roma. 9. Fernando Pessoa (Bernardo Soares)

O rei de Roma
9.
Fernando Pessoa (Bernardo Soares)

Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.

domingo, março 22, 2020

Heterônimos de Fernando Pessoa

"Passo agora a responder à sua pergunta sobre a gênese dos meus heterônimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente. Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. [...]"

quinta-feira, junho 13, 2019

AUTOPSICOGRAFIA. Fernando Pessoa. Poesia.

AUTOPSICOGRAFIA
Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

quinta-feira, janeiro 10, 2019

HORA ABSURDA. Fernando Pessoa. Poesia.

HORA ABSURDA
Fernando Pessoa

O teu silêncio é uma nau com todas as velas
[ pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu
[ sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e
[ as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de
[ qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se
[ parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido,
[ a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar
[ traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a
[ minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a
[ idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio
[ os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré
[ cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana
[ de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá fora... É em
[ mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela
[ escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que
[ nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única
[ estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca
[ chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter
[ sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as
[ naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga
[ sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe
[ negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore
[ que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me
[ alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa
[ nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos
[ caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem
[ chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das
[ barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços
[ daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as
[ naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de
[ vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os
[ nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para
[ si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque
[ o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o
[ olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele
[ lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
[ mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas,
[ muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais
[ haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias,
[ brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se
[ nuas ao luar.
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham
[ partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de
[ naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo
[ fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos
[ jardins de outrora
As próprias sombras estão mais tristes...
[ Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão,
[ e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que
[ eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha
[ alma...
As relvas de todos os prados foram frescas
[ sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares
[ calma,
E eu ver isso em ti e um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...
[ Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...
[ Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com
[ pedras raras...
Minha alma é una lâmpada que se apagou e
[ ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao
[ sol!
Todas as princesas sentiram o seio
[ oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas
[ no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões
[ nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale...
[ Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na
[ aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que
[ está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que
[ penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...
[ Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como
[ medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor
[ de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não
[ perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é
[ um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria
[ tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora
[ não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos
[ os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia
[ no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios
[ eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio
[ mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar
[ sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de
[ virgens que tecem..
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher
[ que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o
[ tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as
[ pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas
[ as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, com um ruído
[ brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens
[ que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
[ mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
[ nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
[ auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica
[ desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande
[ sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é
[ uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a
[ meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo
[ vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma
[ bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta
[ pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro
[ este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face
[ calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios
[ medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a
[ sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além
[ dos sonhos...

[4-7-1913]


quarta-feira, junho 06, 2018

O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS. Fernando Pessoa. Poesia.

O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS
Fernando Pessoa

O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

quarta-feira, dezembro 07, 2016

Autopsicografia. Fernando Pessoa. Poesia

Autopsicografia
Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração

sábado, abril 16, 2016

O encontro.

Numa das viagens a Portugal, Cecília Meireles marcou um encontro com o poeta Fernando Pessoa no café A Brasileira, em Lisboa. Sentou-se ao meio-dia e esperou em vão até as duas horas da tarde. Decepcionada, voltou para o hotel, onde recebeu um livro autografado pelo autor lusitano. Junto com o exemplar, a explicação para o "furo": Fernando Pessoa tinha lido seu horóscopo pela manhã e concluído que não era um bom dia para o encontro.

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

sexta-feira, abril 10, 2015

O amor. Fernando Pessoa. Poesia

O Amor
Fernado Pessoa

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

terça-feira, dezembro 24, 2013

Tabacaria. Fernando Pessoa. Poesia

Tabacaria
Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

sexta-feira, junho 15, 2012

Mare nostrum.

Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena?
Tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa.

sábado, dezembro 31, 2011

Fernando Pessoa escreve

ás 4 da madrugada

Meu amorzinho, meu Bébé querido:

São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apezar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Ha trez noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horriveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estupida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o somno. É que, sem ter febre, eu tinha delirio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influencia directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de hontem arreliado com cousas, que se estão atrazando, relativas á vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermedio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma serie de noticias desagradaveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.
Depois, estar doente exactamente numa occasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.

Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espirito em que tenho vivido estes dias, estes dois ultimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausencia, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quasi três dias!
Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste hontem pelo Osorio? Comprehendo que estivesses tambem com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tães, que me doeu immenso ler a tua cartinha e ver o que soffrias. O que te aconteceu, amôr, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa peor que te acontecesse? Porque fallas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando d'elle, quando não tens para isso razão nenhuma?

Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimonia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remedio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sêde e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.

Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.

Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu

Fernando

sexta-feira, novembro 11, 2011

AUTOPSICOGRAFIA
Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.