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quinta-feira, abril 30, 2020

Escada do Amor: síntese da educação filosófica em Platão (Parte I)

Escada do Amor: síntese da educação filosófica em Platão (Parte I)

1. Platão e a Aurora da Filosofia

A crise psicológica abre um caminho duplo: fuga ou enfrentamento. Esse é o significado da palavra grega krísis: momento de decisão. A luta por tomar decisões, as mais conscientes possíveis, é uma constante da natureza humana, talvez seu cerne. A filosofia é filha da crise, surge de um parto doloroso no ventre do caos. Transmutar a noite da ignorância no dia da compreensão é a jornada fundamental por nosso ouro. A filosofia é um projeto de conhecimento que busca, o mais fielmente possível, encarnar o desejo humano por decisões cada vez mais conscientes, cada vez mais sábias. Há milhares de anos, desde sua concepção original em Platão, esse caminho vem sendo trilhado por ignorantes. Pois o primeiro passo da jornada filosófica é reconhecer a própria ignorância.

Muitos outros encontraram, e vem encontrando, esse mesmo caminho. Gregos, ingleses, norte-americanos, árabes; pessoas de diferentes épocas e com diferentes configurações existenciais. Essa tradição milenar, um dos pilares da civilização ocidental, foi fundada com a obra platônica. Nesse ponto, estou de acordo com Whitehead:

“A caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que consiste em uma série de notas de rodapé a Platão”.

E também Emerson, brilhante ensaísta norte-americano do século XIX: “Platão é Filosofia; e Filosofia, Platão”.

Aqueles que vieram antes, os chamados pré-socráticos, não tinham ainda a autoconsciência necessária para se autoproclamarem filósofos. Foram prelúdios, relâmpagos de lucidez, ao sabor dos poetas (1). Com Platão a filosofia ganha, como ressalta o professor Olavo de Carvalho (2), o caráter de projeto autoconsciente.

Por outro lado, quem vem na sequência da história da filosofia, seja para concordar em alguns pontos e corrigir outros (Aristóteles, por exemplo) ou mesmo para negar absolutamente o projeto platônico (Nietzsche, por exemplo), invariavelmente reconhece a originalidade de Platão. Ao falar de filosofia estou, em alguma medida, falando do projeto platônico. Por quê? Porque é em Platão que está a origem da filosofia.

Mas, trocando em miúdos, o que compõe esse projeto, a Filosofia? Em resposta a que crise ela foi criada? Para explorar essas perguntas, será preciso uma breve incursão ao contexto cultural do qual a obra platônica emergiu.

2. Platão, o médico da Pólis


Estátua de Platão e a deusa Atenas (personificação da Sabedoria), na entrada da Academia em Atenas, Grécia (fundada em 1926).

Em seu diálogo Górgias, Platão compara o filósofo ao médico. A analogia é interessante e serve de molde para a compreensão do projeto platônico. De maneira geral, para se tratar uma doença, o médico emprega três ações: diagnóstico, solução e aplicação. O diagnóstico significa uma leitura dos sinais apresentados no paciente, de modo a que se encontre a doença, ou seja, a raiz daquilo que lhe aflige; a leitura correta desses sinais leva o médico a um correto diagnóstico. Em seguida, consciente do que aflige o paciente, o médico buscará uma solução, ou seja, o que precisa ser feito tendo em vista a cura daquele mal. Tendo encontrado essa solução, será a vez de definir, através dos recursos disponíveis, uma maneira de aplicar essa solução. A doença encontrada por Platão em sua cidade é de ordem política. E assim como o médico, ele procurará as raízes, a solução e o tratamento dessa doença.

Diagnóstico: uma crise cultural

A filosofia platônica parte de um profundo desgosto frente à decadência política de Atenas. A condenação de Sócrates serve como símbolo dessa triste situação, vivenciada amargamente por Platão. Referindo-se às revoluções políticas que antecederam a condenação de Sócrates, o filósofo nos relata:

“Levando-se em conta minha mocidade, não é de admirar que eu tivesse ilusões. Por isso, imaginava que eles [os novos líderes políticos] governariam a cidade fazendo-a passar das vias da injustiça para as da justiça (…) Ora, o que vi foi que em pouquíssimo tempo esses homens deixaram parecida a antiga ordem de coisas com a verdadeira idade de ouro. Como exemplo de suas arbitrariedades, bastará notar o que fizeram com o meu velho amigo Sócrates, que eu não vacilo em proclamar o varão mais justo de seu tempo.”(3)


A morte de Sócrates (1787), Jacques-Louis David.

Contudo, nosso filósofo não se contenta em constatar a superfície do problema; como bom médico, percebe que a corrupção política é apenas um sintoma, cuja raiz repousa em um outro tipo de corrupção, um tipo mais sutil, menos evidente: a corrupção intelectual. Dadas a decadência da religião tradicional grega e o desenvolvimento sem precedentes da técnica argumentativa, a nova geração de líderes atenienses reconhecia como formadores uma nova classe de professores: os sofistas.

Essa classe de professores constituía aquilo que hoje chamaríamos de ensino superior, ou seja, depois do ensino básico (no caso dos atenienses, a educação na música (arte das musas) e na ginástica) o ensino sofístico configurava uma continuidade na formação intelectual dos jovens. Qual é o tom geral da educação sofística? O treinamento na técnica argumentativa, a retórica e a erística, visando a formar jovens que, através do domínio da palavra e da argumentação, pudessem destacar-se na vida pública.

E o que há de errado nisso? O DNA sofístico é corrupto por natureza, pois a importância e o desenvolvimento dedicados à retórica baseiam-se em um relativismo moral de consequências desastrosas. A sofística parte dos pressupostos de que não existem verdade objetiva e valor moral objetivo; tudo quanto há no universo humano é convenção. Ora, por que então algumas convenções sobrepõem-se às outras, no caso de uma lei, de uma ideia ou de um costume moral, por exemplo? “Veja bem…”, responderá o sofista, “ o que prevalece na cultura humana não é graças a seu valor objetivo, é graças ao poder retórico que o defende”. Na visão sofística, tudo o que existe no âmbito da cultura humana são embates retóricos entre diferentes discursos; não existe um certo ou um errado, o que existe é uma boa ou uma má retórica. Quem souber defender seu ponto de vista adequadamente ganhará o debate e, portanto, estará certo, será lei. Sendo assim, a ciência régia, a única ciência que importa aprender, é a ciência da retórica. O que conhecemos por lei, não passa da vontade do mais forte. Quem é o mais forte? Aquele que domina a retórica, que faz vibrar a assembleia, aquele que convence. Tudo é discurso (alguém se lembrou de Foucault aí?) e prevalece o discurso que convence; a verdade é convenção, ou seja, é a meretriz da Retórica. Como exemplo do espírito sofista, podemos lembrar da célebre frase de Protágoras: “ o homem é a medida de todas as coisas”(4)


Nessa imagem, o rei Luís XIV trajado de rei sol. Assim, o sofista e o tirano prentendem encarnar a sabedoria. Iludidos, acreditam-se detentores de umbigos solares, ao redor dos quais todo o universo deve, naturalmente ou a força, girar. Quem terá a coragem de mostrar-lhes o ridículo engano do qual padecem?

A consequência política da educação sofística é abominada por Platão como sendo a pior corrupção possível ao ser humano: a tirania. O tirano é justamente quem aplica a tese sofística até as últimas consequências. “Não há lei superior”, dirá o tirano, “a lei é a vontade do mais forte. Eu sou o mais forte; portanto: Eu sou a lei!”. Sob o jugo de tiranos a gloriosa Atenas, o berço cultural do Ocidente, ruiu.

A morte de Sócrates evidenciou essa ruína, expôs a injustiça e a corrupção reinantes. O contraste em relação à gloriosa Atenas de Péricles evidenciava que algo fora perdido. Tornava-se necessário reencontrar um princípio de ordem capaz de resgatar a civilização grega. Em busca desse princípio, Platão desenvolve um projeto original de cultura, a filosofia.

Filósofo, o antídoto do sofista

Na mesma carta VII, sua investigação leva-o a conceber os glóbulos brancos, os anti-corpos, capazes de sanar a doença política ateniense: o filósofo. Eis a famosa tese platônica:

“Por fim, cheguei à conclusão de que as cidades do nosso tempo são mal governadas, por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem pra melhor. Daí ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas da justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar, por algum motivo divino, os dirigentes das cidades.”(5)

Essa tese traz em si duas mudanças de perspectiva fundamentais: 1- do âmbito coletivo (a pólis), Platão passa ao âmbito individual (o filósofo); 2- Da ação política, Platão passa à ação educativa: é preciso formar filósofos verdadeiros. Eis a solução platônica, segundo a vejo: o princípio de ordem capaz de regenerar a sociedade, a semente civilizacional da qual a salvação da pólis depende, encontra-se dentro do indivíduo. Como acessar e atualizar essa semente? Através da educação filosófica. Portanto, resgatando nossa metáfora médica, encontramos a solução e a aplicação que seguem ao diagnóstico platônico: o filósofo e a educação filosófica.

O filósofo é a solução para a crise política observada por Platão, pois ele é o antídoto agindo nas causas últimas daquela crise. Como vimos, é a cultura sofística quem está na origem da corrupção da pólis. Ela contêm, em germe, a pior das degenerações políticas: a tirania. De que modo, portanto, a cultura filosófica contrapõe-se a ela? Por sua própria natureza intrínseca a filosofia combate a sofística. O filósofo, por definição, reconhece, em primeiro lugar, a existência da Verdade objetiva (existe a sophia, a sabedoria); em segundo lugar, ele reconhece que essa Sabedoria não se encontra nele, mas além dele, por esse motivo ele precisa buscá-la (philo, amor, + sophia, sabedoria). Ao passo que o sofista, por desacreditar na objetividade da sabedoria, pretende encarná-la em si mesmo, autoproclamando-se sábio (sóphos, daí a palavra sofista); o filósofo é quem, por reconhecer a objetividade da sabedoria, reconhece sua própria ignorância, ou seja, sua falta de sabedoria (ou vice-versa) e, não obstante, decide-se por buscá-la amorosamente. Como exemplo do espírito filosófico, podemos lembrar da célebre frase socrática: “só sei que nada sei”.

Como podemos observar, o projeto de conhecimento da sofística está imbuído de orgulho, de presunção; dada a inexistência real da sabedoria e da verdade, é a mente humana quem servirá de régua última da realidade, a capacidade racional-linguística é quem ocupará o lugar de Deus. Já o projeto de conhecimento filosófico está fundado sobre a humildade, o reconhecimento de uma fonte de sabedoria superior (ou seja, para além de si) e frente a qual só uma atitude é adequada: a busca amorosa. Nesse projeto, a mente humana, sua capacidade racional-linguística, é apenas um instrumento capaz de aproximar-se da Verdade. Para o sofista, reconhecer-se plenamente humano é empoderar-se da mente enquanto criadora da verdade. Para o filósofo, reconhecer-se plenamente humano, é aceitar, humildemente, que o máximo da mente humana é que seja o mais transparente possível, de modo a ser um receptáculo da Verdade. Essa oposição, chave para toda a cultura ocidental, está muito bem expressa nas palavras do clarividente filósofo francês do século XX, Louis Lavelle:

“ Não há senão duas filosofias entre as quais é necessário escolher: a de Protágoras, segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, mas a medida que ele se dá é também sua própria medida; e a de Platão, que é também a de Descartes, para quem a medida de todas as coisas é Deus e não o homem, mas um Deus que se deixa participar pelo homem, que não é somente o Deus dos filósofos – o Deus das almas simples e vigorosas que sabem que a verdade e o bem estão acima delas e jamais se recusam àqueles que as buscam com coragem e humildade” (6).

Ao investigar a crise política de Atenas, Platão encontra sua raiz, a corrupção intelectual dos sofistas, e sua solução: o filósofo. A aplicação dessa solução é justamente a maneira pela qual formar esse antídoto ao sofista, o filósofo. Por esse motivo, Platão fundou uma escola, a Academia, e não um partido político; também é por esse motivo que Platão não foi, ele próprio, um político, mas um professor.


Alcibíades sendo ensinado por Sócrates (1777), de François Andre Vincent. Sócrates, o memorável: ditos e feitos dedicados à busca amorosa da Sabedoria. Amou-a tanto que entregou o maior de seus bens, a vida. Seu sacrifício faz dele o paradigma de filósofo, a figura modelar do amante buscador. Ó Sócrates, granjeaste a admiração da posteridade e continuas hoje, como o fazias então, a nos inquirir: quid est?

Aplicação: a educação filosófica

O filósofo é o antídoto do sofista, logo, é preciso formar o filósofo. Como formá-lo? Com essa pergunta, chegamos ao coração da filosofia platônica. O legado platônico é, acima de tudo, um legado educacional: Platão é o filósofo da paideia [palavra grega para educação], por excelência. A educação filosófica é, acima de tudo, um modo de educar cuja finalidade é a formação do filósofo. Qual o conteúdo dessa formação?

Os documentos concretos desse conteúdo estão reunidos na obra platônica. O conjunto de seus diálogos é o currículo de sua escola. Ali estão as informações, as revelações e os testes necessários à aprendizagem e à formação do filósofo. O princípio capaz de dar unidade aos diálogos platônicos deve ser, sobretudo, um princípio pedagógico.

Dadas a riqueza e complexidade vertiginosas dessa obra, minha proposta é descrever aquilo que considero a estrutura essencial desse projeto de formação. Platão, filósofo por necessidade e poeta por estirpe, simboliza esse projeto na forma de um caminho ascendente, de uma escada do amor; esse será o tema de meu próximo texto.

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(1) É preciso dizer que nem todos os estudiosos da filosofia concordam sobre esse ponto. Alguns, por exemplo, evocam Pitágoras (séc. VI a. C.). Segundo algumas fontes, ele teria sido o primeiro a negar a alcunha de sábio, forjando o neologismo filósofo. Em todo caso, dado que a obra dos pré-socráticos (incluindo Pitágoras) nos chegou na forma de fragmentos, a mim permanece cabível considerar a obra platônica o primeiro documento integral (a obra platônica nos chegou por completo) a transmitir o espírito original da filosofia.

(2) CARVALHO, Olavo. História Essencial da filosofia. É Realizações. Aulas 02 e 03.

(3) PLATÃO. Carta VII (324 d-e). Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.

(4) HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos / Martins Fontes, 2004. Pág: 808.

(5) PLATÃO. Carta VII (326 a-b). Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.

(6) LAVELLE, Louis. De L´Être, p. 35.


http://escoladeartesliberais.com.br/

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