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quarta-feira, agosto 29, 2018

Condomínios fechados da Grande Salvador

ASPAS SOBRE CONDOMÍNIOS FECHADOS 4

Certa vez, num condomínio fechado de nome “Encontro das Águas”, em Santo Amaro do Ipitanga (atual município de Lauro de Freitas, litoral norte da região metropolitana de Salvador), o antropólogo e planejador urbano Roberto Pinho deixou escapar: “O que tem de mais parecido com isso é o cemitério Jardim da Saudade”. A observação era perfeita. Os monótonos e intermináveis gramados são os mesmos. Aliás, essa mania de gramados produz absurdos. Uma vez, um sujeito perguntou por que eu não tirava duas grandes árvores que verdejavam floridas em minha casa, um flamboyant e uma mangueira, limpando o espaço para um belo gramado. Disse a ele que gostava de árvores e que meu propósito era ter um jardim, não um pasto. E a comparação de Pinho, embora ele não soubesse, era irretocável do ponto de vista histórico. Foi da concepção e do desenho do garden cemetery, do jardim-cemitério do século XIX, que nasceu o subúrbio tão típico dos Estados Unidos, casas espalhadas num cenário “natural”, idílico, com seus gramados. E, dessa primeira onda de suburbanismo programático das classes privilegiadas, brotaram as chamadas gated communities, que os brasileiros copiaram nos “condomínios fechados”.

Na origem daquele condomínio do litoral norte de Salvador está, portanto, o cemitério-jardim norte-americano. Uma diferença está em que subúrbio, nos EUA, era coisa de quem tinha dinheiro, ganhava bem. No Brasil, ao contrário, subúrbio e periferia se tornaram coisas das classes de média e baixa renda. Daí que moradores ricos de condomínios fechados, nas vizinhanças de Salvador, fiquem surpresos quando me dirijo a eles dizendo: “vocês aqui do subúrbio... vocês da periferia...”. Eles se sentem quase insultados. Acham que subúrbio é Cidade Baixa, etc. A divisão entre cidade alta e cidade baixa, aliás, fixou-se aqui muito mais como distinção social do que como delimitação geográfica (afinal, geograficamente, a Barra seria cidade baixa). Mas o fato é que os condomínios fechados, nos arredores da cidade, são, sim, subúrbio e periferia. E foi a abertura da Avenida Paralela que tornou possível sua existência, a implantação desse rosário suburbano de núcleos ou focos vedados, como seu novo-riquismo de rendas variáveis. Outra coisa curiosa. Condomínios fechados do litoral norte se implantam em terras que não pertencem ao município de Salvador. Estão na região metropolitana da Cidade da Bahia, mas em outros municípios. No entanto, até hoje, seus moradores (salvo exceções, como os de Busca Vida) se veem e se sentem, regra geral, como habitantes de Salvador. Logo, objetivamente, do subúrbio ou periferia da cidade. Mais: o sujeito diz que mora em tal ou qual condomínio (Encontro das Águas, Pedras do Rio, etc.) e não que mora na cidade de Lauro de Freitas, lugar que explodiu demograficamente, como cidade-dormitório, de uma hora para outra... Ele não quer ser visto como morador daquela cidade.

Mesmo dentro de Salvador, é evidente que um condomínio fechado é um enclave antissocietário. Antiurbano. É uma entidade física excludente, recorrendo a elementos e expedientes da engenharia de guerra, fechando-se a tudo que é público. A tudo que, de fato, constitui a cidade, em seu sentido mais largo e essencial. Mas os condomínios fechados do litoral norte ainda vão além disso. Seus moradores não tomam conhecimento da cidade em cuja área o condomínio se instalou. O espaço residencial fechado, totalmente de costas para a formação urbana envolvente, é signo de “status” e de exclusão classista. Daí, de resto, o preconceito atual com relação a Vilas do Atlântico. Vilas virou bairro, com seu uso misto do solo e seu circuito de gente de procedência social variada. Os “condôminos” não querem ser identificados com “aquilo” – e muito menos com a cidade onde Vilas está implantada. Vale dizer: enquanto o morador de um condomínio do Horto Florestal, embora ostentando signos de distinção social, não olha Salvador de cima, empinando o nariz, moradores de condomínios do litoral norte não só não acham que vivem em Lauro de Freitas, por exemplo, como a olham com indiferença ou até desprezo.

Nesse sentido, a cidade de Lauro de Freitas é um estorvo, uma nódoa detestável, um estigma. Um espaço desordenado onde se concentram pretos, mulatos e brancos pobres. A população condominial, ciosa de seus crachás, quer distância dela. A cidade vai se expandindo assim, dentro da área do município, não pelo avanço de bairros que se vão aproximando uns dos outros. Mas pela soma de enclaves que excluem e se excluem. De modo que a expansão municipal se dá, digamos, dentro de um padrão esquizoide. Em resposta, para continuar no meu exemplo, habitantes que vivem em – e se consideram moradores de – Lauro de Freitas (a maioria, aliás, não nasceu lá, o que já torna o próprio núcleo central do município uma entidade ainda mal resolvida) reagem: condôminos são forasteiros endinheirados geralmente “brancos”, que se implantam ou se enquistam no espaço externo da cidade, sem sequer se dignar a cuspir no prato em que comem. E é claro que disso tudo não pode vir coisa boa. ASPAS António Rizério

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