terça-feira, março 06, 2012

O vale das mulheres. Boccaccio

O sol ainda estava bem alto, porque a conversação tinha sido breve. Por isso, logo que Dioneu e os outros rapazes se puseram a jogar gamão, Elisa chamou de parte as donzelas e lhes disse:

"Desde que chegamos aqui eu tenho desejado levá-las a um lugar muito perto de onde estamos e aonde até agora não creio que nenhuma de nós tenha ido: chama-se Vale das mulheres. Até hoje, quando o sol ainda vai alto, nunca tinha achado tempo de levá-las até lá. Assim, se quiserem vir comigo, não tenho a menor dúvida de que, ao chegar lá, todas ficarão contentíssimas de ter ido". Responderam as donzelas que estavam prontas e, chamando uma das criadas, sem nada dizer aos rapazes, puseram-se a caminho.

Não andaram mais de milha e chegaram ao Vale das Mulheres. Nele entraram por uma passagem muito estreita, onde corria um límpido regato, nascido em um dos extremos. Viram que o vale era o mais lindo e aprazível que se pudesse conceber, especialmente naquele tempo de calor forte. E, segundo uma delas me contou depois, a planície formada pelo vale era redonda como se traçada com compasso, embora não parecesse obra de mãos humanas, e sim da natureza. Tinha um raio de pouco mais de meia milha e era rodeada de seis outeiros, não muito elevados, e no alto de cada qual se enxergava um palácio feito quase em forma de castelinho gracioso. As encostas das colinas desciam para a planície como degraus de anfiteatro, que vemos descer de alto a baixo em sucessão ordenada, sempre estreitando o circuito.



Dessas encostas, as voltadas para o meio-dia estavam cobertas de vinhedos, olivais, amendoeiras, cerejeiras, figueiras e muitas outras espécies de árvores frutíferas carregadas, sem um palmo de chão vazio. As encostas voltadas para a tramontana tinham matas de carvalhais, de freixos e de outras árvores muito verdejantes aprumadíssimas. A planície vizinha, que não tinha entradas além daquela por onde passaram as donzelas, estava cheia de abetos, de ciprestes, de louros e de alguns pinheiros tão bem distribuídos e arrumados quanto poderia dispor o melhor artífice. Ali, pouco ou nada de sol, mesmo a pino, podia chegar ao chão, que era uma relva miudinha, cheia de flores vermelhas e outras mais.

Outra coisa, além disso, não causava menor deleite: era um riacho que, de um dos vales separados pelas montanhas, despencava por boqueirões de pedra viva e ao cair fazia rumor muito agradável. Seus borrifos de longe pareciam azougue miúdo que se desprendesse de coisa apertada. Ao cair na pequena planície, por ela corria rápida até o meio, onde formava uma pequenina lagoa, como nos jardins fazem para viveiro os que têm habilidade. Não era essa lagoa mais profunda que a altura de um homem, medida até o peito. Nele nada havia de impureza e seu fundo límpido mostrava ser de cascalho miúdo que alguém que se dispusesse poderia contar. Nem se enxergava somente o fundo das águas, mas também tantos peixes a percorrê-las cá e lá que, além de dar prazer, causavam admiração. Nenhuma outra margem cercava a lagoa além do relvado, que ali em volta era ainda mais belo por desfrutar da umidade. As águas que transbordavam do lago alimentavam um pequeno canal e por ele saíam, vale abaixo.

Entretanto chegaram as donzelas, contemplaram tudo e enalteceram o lugar. Depois, por ser grande o calor, olharam para a lagoa límpida e amena, e, sem receio de serem vistas, resolveram banhar-se. Mandaram à criada que ficasse no caminho de entrada, espiasse e as avisasse, se viesse alguém. Depois, as sete donzelas se despiram e entraram no lago, que tanto podia esconder seus corpos quanto um cristal esconderia uma rosa. Nem por estarem no lago se turvavam as águas e elas se puseram a ir cá e lá atrás dos peixes, que mal sabiam onde esconder-se, e a tentar apanhá-los nas mãos. Depois de assim brincarem por algum tempo e de apanhar alguns peixes, saíram dali e se vestiram, sem encontrar mais palavras para enaltecer aquelas paragens. Por lhes parecer hora de terem de voltar à casa, enquanto iam conversando sobre a beleza do lugar, puseram-se a caminho com passo sossegado.

Chegaram cedo ao palácio e lá encontraram os rapazes ainda jogando, como haviam ficado. Pampinéia, rindo, lhes disse: "Hoje afinal nós logramos vocês".

"Ora, como?", disse Dioneu. "Então vocês primeiro fazem e depois dizem?"

"Sim, senhor", respondeu Pampinéia e lhe contou por miúdo donde vinham, como era o lugar, quanto distava dali e o que haviam feito.

O rei, ouvindo descrever a beleza do lugar e desejoso de vê-lo, logo mandou servir a ceia. Logo que esta terminou, estando todos satisfeitos, os três jovens e seus criados, afastando-se das donzelas, foram até o vale e, depois de tudo contemplar, pois nenhum antes havia lá estado, louvaram o lugar como uma das belezas do mundo.

Banharam-se e tornaram a vestir-se e, por se fazer muito tarde, voltaram à casa, onde encontraram as donzelas a dançar uma ciranda cantada por Fiammetta. Acabaram de dançar com elas e entraram a falar do Vale das Mulheres, com palavras de muito agrado e louvor. Por isso o rei, fazendo chamar o mordomo, mandou-lhe que lá, na manhã seguinte, preparasse tudo quanto fosse preciso, levando alguns leitos para quem quisesse dormir ou fazer a sesta. Depois, fez trazer archotes, vinho e confeitos e, depois de restaurarem um tanto as forças, mandou que todos se dessem a bailar. Logo que Panfilo, por vontade própria, iniciou uma dança, o rei voltou-se para Elisa e disse-lhe amavelmente: "Linda donzela, tu hoje me honraste, dando-me a coroa, e eu quero honrar-te esta noite, convidando-te a cantar uma canção. Canta, pois, a que mais te agradar". Elisa respondeu-lhe sorrindo que com gosto o faria e assim se pôs a cantar:

Amor, se eu escapar às tuas garras
Não creio que jamais
voltarei a cair noutras amarras.
Criança ainda entrei em tua guerra,
tomando-a por suprema e doce paz;
as armas, ao te ver, depus em terra
pois armas, quem confia já não traz.
Mas tu, duro tirano, cruel, falaz,
com garrotes fatais
outrora me prendeste e inda me agarras.
Tu me entregaste atada em tuas correntes
a quem nasceu para me dar a morte;
verti debalde lágrimas dolentes:
dele depende agora minha sorte
sem que nada lhe importe
o clamor de meus ais,
lançou-me em cárcere de fortes barras.
Todos os rogos meus, leva-os o vento;
minhas queixas, ninguém quer acolher
e vai assim crescendo meu tormento
detesto a vida, mas não sei morrer.
Ai, prende, Amor, quem só me faz sofrer!
Tem compaixão, que já não posso mais:
Prende-o a mim, já que não me desamarras.
Se sem isso quiseres, oh!, desprende
deste meu peito os laços da esperança
Esta súplica ao menos, pois, atende:
Voltem a mim beleza e confiança;
Cessem meus sofrimentos sem tardança
E ornamentos florais
Brancos, rubros, de gala me dêem arras.

Elisa terminou a canção com um suspiro cheio de dó e embora todos se admirassem de tais palavras, ninguém conseguiu atinar quem lhe daria motivo de cantar assim. Mas o rei, que estava de bom gênio, fez chamar Tíndaro e mandou-o trazer a gaita de foles, a cujo som conduziu muitas danças. E tendo-se passado já boa parte da noite, disse a todos que fossem dormir.

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