segunda-feira, março 24, 2025

João Cabral de Melo Neto O Relógio

1.


Ao redor da vida do homem

há certas caixas de vidro,

dentro das quais, como em jaula,

se ouve palpitar um bicho.


Se são jaulas não é certo;

mais perto estão das gaiolas

ao menos, pelo tamanho

e quadradiço de forma.


Uma vezes, tais gaiolas

vão penduradas nos muros;

outras vezes, mais privadas,

vão num bolso, num dos pulsos.


Mas onde esteja: a gaiola

será de pássaro ou pássara:

é alada a palpitação,

a saltação que ela guarda;


e de pássaro cantor,

não pássaro de plumagem:

pois delas se emite um canto

de uma tal continuidade


que continua cantando

se deixa de ouvi-lo a gente:

como a gente às vezes canta

para sentir-se existente.


2.


O que eles cantam, se pássaros,

é diferente de todos:

cantam numa linha baixa,

com voz de pássaro rouco;


desconhecem as variantes

e o estilo numeroso

dos pássaros que sabemos,

estejam presos ou soltos;


têm sempre o mesmo compasso

horizontal e monótono,

e nunca, em nenhum momento,

variam de repertório:


dir-se-ia que não importa

a nenhum ser escutado.

Assim, que não são artistas

nem artesãos, mas operários


para quem tudo o que cantam

é simplesmente trabalho,

trabalho rotina, em série,

impessoal, não assinado,


de operário que executa

seu martelo regular

proibido (ou sem querer)

do mínimo variar.


3.


A mão daquele martelo

nunca muda de compasso.

Mas tão igual sem fadiga,

mal deve ser de operário;


ela é por demais precisa

para não ser mão de máquina,

a máquina independente

de operação operária.


De máquina, mas movida

por uma força qualquer

que a move passando nela,

regular, sem decrescer:


quem sabe se algum monjolo

ou antiga roda de água

que vai rodando, passiva,

graçar a um fluido que a passa;


que fluido é ninguém vê:

da água não mostra os senões:

além de igual, é contínuo,

sem marés, sem estações.


E porque tampouco cabe,

por isso, pensar que é o vento,

há de ser um outro fluido

que a move: quem sabe, o tempo.


4.


Quando por algum motivo

a roda de água se rompe,

outra máquina se escuta:

agora, de dentro do homem;


outra máquina de dentro,

imediata, a reveza,

soando nas veias, no fundo

de poça no corpo, imersa.


Então se sente que o som

da máquina, ora interior,

nada possui de passivo,

de roda de água: é motor;


se descobre nele o afogo

de quem, ao fazer, se esforça,

e que êle, dentro, afinal,

revela vontade própria,


incapaz, agora, dentro,

de ainda disfarçar que nasce

daquela bomba motor

(coração, noutra linguagem)


que, sem nenhum coração,

vive a esgotar, gôta a gôta,

o que o homem, de reserva,

possa ter na íntima poça.

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