quinta-feira, dezembro 08, 2022

Dolores Duran

 Dolores Duran


Para Dolores Duran a noite começava no Cangaceiro, onde, quando estava especialmente feliz, bebia um coquetel de frutas, mas quando sentia que "a solidão vai acabar comigo" tomava uísque puro.

Lá batia um papo, soltava algumas piadas e depois ia cantar no Little Club , outra boate da área, do mesmo dono do Cangaceiro.

No final da noite, antes de começar outro circuito, "duas cafiaspirinas, uma colher-de-açúcar em um cálice e meio de água" e estava pronta.


Dificilmente dormia antes do início da manhã, cantava até tarde nas boates, prolongava por alguns locais e chegava a ir assistir a primeira missa do dia no Mosteiro de São Bento, sob o fundo musical dos cantos gregorianos.

Como artista e boemia, Dolores se movia com destreza nesse espaço que conhecia como ninguém, identificando-se com esse universo suas regras e formas de expressão que se diferenciavam das do dia, mas nem por isso eram marginais ou desvinculadas dos elementos fundantes da sociedade, como trabalho e família 3. 

Dolores era reconhecida nas rodas da boemia, suas canções captavam muito desta atmosfera enfumaçada e do samba-canção


Em versos como "Aí a solidão vai acabar comigo", Dolores traduzia toda uma angústia de seu tempo, da dor de amor, da procura de um amor idílico, com uma ânsia de perfeição nunca satisfeita, envolvida numa atmosfera de alegria triste e melancólica, dos olhos perdidos e marejados, de amores de contramão, paixões interditas ou impossíveis, constituindo um dos mais belos momentos da lírica musical brasileira.

Trajetória Melódica

É de manhã�Vem o sol, mas os pingos da chuva�Que ontem caiu�Ainda estão a brilhar,�Ainda estão a dançar...

(Estrada do sol, Dolores Duran e A. C. Jobim)


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Confirma sua maestria vocal a opinião da própria Ella Fitzgerald, uma expert no estilo, que durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, nos anos 50, foi à boate Baccarat  especialmente para ouvir Dolores, que interpretou My funny Valentine (Hodges e Hart), um clássico da música popular norte-americana. Conta-se que Ella Fitzgerald elogiou efusivamente a interpretação.

No início dos anos 50, a canção francesa gozava de muito prestígio no Rio  8, e Charles Aznavour, um dos seus expoentes à época, ao se apresentar na cidade, aplaudiu as interpretações de Dolores no Little Club .


Em 1955, a jovem Dolores foi apontada pela crônica especializada como a melhor crooner do Rio de Janeiro, trabalhou nas boates mais conhecidas do Rio de Janeiro -Vogue, Beguine, Little Club, Baccarat, Casablanca, Acapulco, Montecarlo - e também se exibiu em São Paulo, no Esplanada.

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Em 1958, com Nora Ney, Jorge Goulart, Conjunto Farroupilha e outros artistas, excursionou pela então União Soviética, mas em Moscou separou-se do grupo (que seguia para China) e foi para Paris, onde permaneceu por cerca de um mês, apresentando-se num pequeno bar freqüentado por brasileiros.

Sua estréia em disco foi em 1952, gravando dois sambas para o Carnaval de 1953: Que bom será (Ailce Chaves, Salvador Miceli e Paulo Marquez) e Já não interessa (Domício Costa e Roberto Faissal). Em 1953, gravou Outono (Billy Blanco) e Lama (Paulo Marquez e Ailce Chaves).

Os primeiros sucessos vieram dois anos depois, com o lançamento de Canção da volta (Antonio Maria e Ismael Neto) e Bom querer bem (Fernando Lobo). Em 1955 grava Praça Mauá (Billy Blanco) e Carioca (Antonio Maria e Ismael Neto).

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Ficou conhecida como intérprete de samba-canção, mas era cantora de múltiplas facetas, graças à versatilidade adquirida como crooner de orquestras, junto às quais cantava de tudo. Em seus discos aparecem desde sambas bem-humorados, baiões, até músicas estrangeiras (sua gravação de My funny Valentine foi incluída no seu último disco, um compacto duplo gravado ao vivo em São Paulo)..

……


Dolores Duran compôs poucos sambas-canções, mas mesmo com esse restrito repertório suas composições denotam uma sensibilidade que a aproxima do sublime, sendo inconfundível e marcante, sua poética musical caracteriza-se pelo intimismo, cantando as verdades mais secretas dos corações apaixonados e desiludidos, produzindo versos singelos e sensíveis como os de Noite do meu bem:

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver�e a primeira estrela que vier�para enfeitar a noite do meu bem

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Suas composições não são homogêneas, pois muitas surgiram num final de noite, numa mesa de boate, escritas com lápis de sobrancelha e um guardanapo ou maço de cigarros, como Fim de caso: "Fim de Caso" foi no Little Club , no Beco das Garrafas .

Não tinha mais ninguém, quase 4 horas da manhã.

Eu cantava em outra boate O Cangaceiro. Saí do Cangaceiro e passei no Little, que pertencia ao mesmo dono. 

Dolores estava sentada, violão no colo e uma folha de papel à frente.

Como sempre, escrevendo com o lápis de sobrancelhas.

Perguntei o que ela estava fazendo e ela só me respondeu: "Pera aí, pera aí, que eu estou terminando um negócio aqui".

E "nasceu" "Fim de caso".13

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Também este foi o caso de Por causa de você, letra colocada sobre a música de Tom Jobim (com quem comporia ainda Se é por falta de adeus e Estrada do sol). Declarou Tom Jobim:

Ela era muito sensível, além de muito talentosa.

Das três músicas que fizemos juntos, minha preferida é "Por causa de você", cuja letra deveria ser feita pelo Vinícius de Morais.

Só que Dolores, assim que ouviu a música, escreveu a letra em dois minutos e mandou um recado para o Vinícius, pedindo que a deixasse assim...14

Conta-se que Dolores ouviu Tom Jobim dedilhar uma linda melodia e logo se prontificou a fazer a letra. Encabulado, Tom, não teve como dizer que Vinícius de Moraes já tinha escrito os versos, mas Dolores ficou sabendo e telefonou para Vinícius, que reconheceu que a letra dela era melhor. Assim nascia Por causa de você  15

A inspiração poderia surgir num trajeto noturno, caso de Solidão, composta entre o Alto da Boa Vista e o Beco das Garrafas . Dolores, "acometida da canção", parava o carro sob os postes de iluminação aqui e ali e foi compondo.

Ai, a solidão vai acabar comigo�Ai, eu já nem sei o que faço�O que digo�Vivendo na esperança de encontrar�Um dia um amor sem sofrimento�Vivendo para o sonho de esperar�Alguém que ponha fim ao meu tormento�Eu quero qualquer coisa verdadeira�Um amor, uma saudade, uma lágrima�Um amigo�Ai, a solidão vai acabar�Comigo

(Solidão, Dolores Duran)

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Quem sou eu, letra musicada por Ribamar, talvez seu parceiro mais constante, foi feita no avião, numa viagem de Moscou a Paris. Com ele também compôs Pela rua, Idéias erradas e Se eu tiver. Conta-se que escrevia compulsivamente, mas muito se perdeu. Alguns versos foram musicados postumamente a Dolores por Ribamar, como Quem foi?, Que é que eu faço e Ternura antiga, premiada no Festival da Mais Linda Canção de Amor (1960). Carlos Lyra também musicou postumamente O negócio é amar.

Outras composições, contudo, foram cuidadosamente apuradas, é o caso de Noite do meu bem. Dolores também musicava suas letras, produzindo composições nas quais se pode melhor caracterizar seu estilo, caso de Castigo (1958), Noite do meu bem (1959), Fim de caso e Solidão. A melodia era guardada de memória e depois cantarolada para alguém que escrevia a música na pauta.

Seus versos têm a singeleza de uma conversa íntima, confessa:

Eu desconfio que o nosso caso�Está na hora de acabar�Há um adeus em cada gesto, em cada olhar�Mas nós não temos é coragem de falar

(Fim de caso, Dolores Duran)

denuncia:

Olhe, você vai embora�Não me quer agora, promete voltar�Hoje, você faz pirraça�E até acha graça, se me vê chorar...

(Olhe o tempo passando, Dolores Duran e E. Borges)

ou declara:

Se é por falta de adeus�Vá-se embora desde já�Se é por falta de adeus não precisa mais ficar�Seus olhos vivem dizendo o que você teima�em querer esconder...

(Se é por falta de adeus, Dolores Duran e A. C. Jobim) 

Sem recorrer à pieguice, comum em certos sambas-canções, suas composições, alimentando corações solitários e desiludidos, mostravam um sujeito amoroso além do bem e do mal ou do excesso de vida, o amor exacerbado, em geral mal-sucedido, com fortes imagens românticas, as rosas, a solidão da noite, o amante ingrato e infiel, a espera e a procura.

Versos nascidos de paixões, também relatadas na narrativa da canção, ganhavam passionalidade melódica, criando um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo. Assim varava as noites, curtindo a sua fossa, cantando as mágoas:

... Não me deixe chorar novamente�no tormento desta solidão�não me deixe ente todas as coisas�que foram tão nossas�dá-me a tua mão�Ai, leva-me contigo...

(Leva-me contigo, Dolores Duran),

acariciando o inatingível:

Segue o teu sonho impossível�Não tentes fugir�O que eu quero é ficar a teu lado�E te amar sempre, sempre, sem nada pedir

(Leva-me contigo, Dolores Duran)

O sucesso de Dolores Duran sempre foi mais identificado com sua trajetória de cantora de voz delicada, em grande parte o reconhecimento de suas composições foi póstumo. A noite do meu bem torna-se famosa logo após a sua morte 16, segue-se o prêmio no Festival da Mais Linda Canção de Amor, em 1960. 

….


A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer�Briga pensando que não vai sofrer�Que não faz mal se tudo terminar�Um belo dia a gente entende que ficou sozinha�Vem a vontade de chorar baixinho�Vem o desejo triste de voltar...

(Castigo, Dolores Duran)

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Dolores Duran foi a cronista que descreveu as experiências com marcas existencialistas das noites passadas nos bares e boates de Copacabana nos anos 1950!


https://copacabana.com/dolores-duran


Antônio Maria (E) com Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Dolores Duran: destruição do lugar-comum de um mero cronista das agitadas noites cariocas

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