sábado, agosto 20, 2022
ÉTICA A NICÔMACO 8. ARISTÓTELES
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Voltemos novamente ao bem que estamos procurando e indaguemos o que é ele,
pois não se afigura igual nas distintas ações e artes; é diferente na medicina, na
estratégia, e em todas às demais artes do mesmo modo. Que é, pois, o bem de
cada uma delas? Evidentemente, aquilo em cujo interesse se fazem todas as
outras coisas. Na medicina é a saúde, na estratégia a vitória, na arquitetura uma
casa, em qualquer outra esfera uma coisa diferente, e em todas as ações e
propósitos é ele a finalidade; pois é tendo-o em vista que os homens realizam o
resto. Por conseguinte, se existe uma finalidade para tudo que fazemos, essa será
o bem realizável mediante a ação; e, se há mais de uma, serão os bens
realizáveis através dela.
Vemos agora que o argumento, tornando por um atalho diferente, chegou ao
mesmo ponto. Mas procuremos expressar isto com mais clareza ainda. Já que,
evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a
riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins
são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só
existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um,
o mais absoluto de todos será o que buscamos.
Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto
do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que
nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas
desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso
chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si
mesmo e nunca no interesse de outra coisa.
Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela
procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que
à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si
mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um
deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a
posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em
vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.
Considerado sob o ângulo da autossuficiência, o raciocínio parece chegar ao
mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como autossuficiente.
Ora, por autossuficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem
só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a
esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu
para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos
os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos,
teremos uma série infinita.
Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos a
autossuficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e
carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além
disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre
outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela
adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso
de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade é, portanto,
algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação.
Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta
ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria
grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem.
Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para
todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o
"bem feito" residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse
uma função.
Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e
atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou,
assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm
evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do
mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela?
A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando
o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e
crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser
comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do
elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no
sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o
pensamento. E, como a “vida do elemento racional" também tem dois
significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de
atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo.
Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica
um princípio racional, e se dizemos que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal" têm
uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um
bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações,
sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade —
pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é
fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma
certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam
um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma
boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando
está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem
do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a
virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa.
Mas é preciso ajuntar "numa vida completo". Porquanto uma andorinha não faz
verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço
de tempo, não faz um homem feliz e venturoso.
Que isto sirva como um delineamento geral do bem, pois presumivelmente é
necessário esboçá-lo primeiro de maneira tosca, para mais tarde precisar os
detalhes. Mas, a bem dizer, qualquer um é capaz de preencher e articular o que
em princípio foi bem delineado; e também o tempo parece ser um bom
descobridor e colaborador nessa espécie de trabalho. A tal fato se devem os
progressos das artes, pois qualquer um pode acrescentar o que falta.
Devemos igualmente recordar o que se disse antes e não buscar a precisão em
todas as coisas por igual, mas, em cada classe de coisas, apenas a precisão que o
assunto comportar e que for apropriada à investigação. Porque um carpinteiro e
um geômetra investigam de diferentes modos o ângulo reto. O primeiro o faz na
medida em que o ângulo reto é útil ao seu trabalho, enquanto o segundo indaga o
que ou que espécie de coisa ele é; pois o geômetra é como que um espectador da
verdade. Nós outros devemos proceder do mesmo modo em todos os outros
assuntos, para que a nossa tarefa principal não fique subordinada a questões de
menor monta. E tampouco devemos reclamar a causa em todos os assuntos por
igual. Em alguns casos basta que o fato esteja bem estabelecido, como sucede
com os primeiros princípios: o fato é a coisa primária ou primeiro princípio.
Ora, dos primeiros princípios descobrimos alguns pela indução, outros pela
percepção, outros como que por hábito, e outros ainda de diferentes maneiras.
Mas a cada conjunto de princípios devemos investigar da maneira natural e
esforçar-nos para expressá-los com precisão, pois que eles têm grande influência
sobre o que se segue. Diz-se, com efeito, que o começo é mais que metade do
todo, e muitas das questões que formulamos são aclaradas por ele.
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