sexta-feira, agosto 19, 2022

Ética a Nicômaco. 6

 

6 Seria melhor, talvez, considerar o bem universal e discutir a fundo o que se entende por isso, embora tal investigação nos seja dificultada pela amizade que nos une àqueles que introduziram as Formas. No entanto, os mais ajuizados dirão que é preferível e que é mesmo nosso dever destruir o que mais de perto nos toca a fim de salvaguardar a verdade, especialmente por sermos filósofos ou amantes da sabedoria; porque, embora ambos nos sejam caros, a piedade exige que honremos a verdade acima de nossos amigos. Os defensores dessa doutrina não postularam Formas de classes dentro das quais reconhecessem prioridade e posterioridade (e por essa razão não sustentaram a existência de uma Forma a abranger todos os números). Ora, o termo "bem" é usado tanto na categoria de substância como na de qualidade e na de relação, e o que existe por si mesmo, isto é, a substância, é anterior por natureza ao relativo (este, de fato, é como uma derivação e um acidente do ser); de modo que não pode haver uma ideia comum por cima de todos esses bens. Além disso, como a palavra "bem" tem tantos sentidos quantos "ser" (visto que é predicada tanto na categoria de substância, como de Deus e da razão, quanto na de qualidade, isto é, das virtudes; na de quantidade, isto é, daquilo que é moderado; na de relação, isto é, do útil; na de tempo, isto é, da oportunidade apropriada; na de espaço, isto é, do lugar apropriado, etc.), está claro que o bem não pode ser algo único e universalmente presente, pois se assim fosse não poderia ser predicado em todas as categorias, mas somente numa. Ainda mais: como das coisas que correspondem a uma ideia a ciência é uma só, haveria uma única ciência de todos os bens. Mas o fato é que as ciências são muitas, mesmo das coisas que se incluem numa só categoria: da oportunidade, por exemplo, pois que a oportunidade na guerra é estudada pela estratégia e na saúde pela medicina, enquanto a moderação nos alimentos é estudada por esta última, e nos exercícios pela ciência da ginástica. E alguém poderia fazer esta pergunta: que entendem eles, afinal, por esse "em de cada coisa, já que para o "homem em si" e para um homem particular a definição do homem é a mesma? Porque, na medida em que forem "homem", não diferirão em coisa alguma. E, assim sendo, tampouco diferirão o "bem em si" e os bens particulares na medida em que forem "bem". E, por outro lado, o "bem em si" não será mais "bem" pelo fato de ser eterno, assim como aquilo que dura muito tempo não é mais branco do que aquilo que perece no espaço de um dia. Os pitagóricos parecem fazer uma concepção mais plausível do bem quando colocam o "um" na coluna dos bens; e esta opinião, se não nos enganamos, foi adotada por Espeusipo. Mas deixemos esses assuntos para serem discutidos noutra ocasião. Poder-se-á objetar ao que acabamos de dizer apontando que (os platônicos) não falam de todos os bens, e que os bens buscados e amados por si mesmos são chamados bons em referência a uma Forma única, enquanto os que de certo modo tendem a produzir ou a preservar estes, ou a afastar os seus opostos, são chamados bons em referência a estes e num sentido subsidiário. É evidente, pois, que falamos dos bens em dois sentidos: uns devem ser bens em si mesmos, e os outros, em relação aos primeiros. Separemos, pois, as coisas boas em si mesmas das coisas úteis, e vejamos se as primeiras são chamadas boas em referência a uma Ideia única. Que espécie de bens chamaríamos bens em si mesmos? Serão aqueles que buscamos mesmo quando isolados dos outros, como a inteligência, a visão e certos prazeres e honras? Estes, embora também possamos procurá-los tendo em vista outra coisa, seriam colocados entre os bens em si mesmos. Ou não haverá nada de bom em si mesmo senão a Ideia do bem? Nesse caso, a Forma se esvaziará de todo sentido. Mas, se as coisas que indicamos também são boas em si mesmas, o conceito do bem terá de ser idêntico em todas elas, assim como o da brancura é idêntico na neve e no alvaiade. Mas quanto à honra, à sabedoria e ao prazer, no que se refere à sua bondade, os conceitos são diversos e distintos. O bem, por conseguinte, não é uma espécie de elemento comum que corresponda a uma só ideia. Mas que entendemos, então, pelo bem? Não será, por certo, como uma dessas coisas que só por casualidade têm o mesmo nome. Serão os bens uma só coisa por derivarem de um só bem, ou para ele contribuírem, ou antes serão um só por analogia? Inegavelmente, o que a visão é para o corpo a razão é para a alma, e da mesma forma em outros casos. Mas talvez seja preferível, por ora, deixarmos de lado esses assuntos, visto que a precisão perfeita no tocante a eles compete mais propriamente a outro ramo da filosofia. O mesmo se poderia dizer no que se refere à Ideia: mesmo ainda que exista algum bem único que seja universalmente predicável dos bens ou capaz de existência separada e independente, é claro que ele não poderia ser realizado nem alcançado pelo homem; mas o que nós buscamos aqui é algo de atingível. Alguém, no entanto, poderá pensar que seja vantajoso reconhecê-lo com a mira nos bens que são atingíveis e realizáveis; porquanto, dispondo dele como de uma espécie de padrão, conheceremos melhor os bens que realmente nos aproveitam; e, conhecendo-os, estaremos em condições de alcançá-los. Este argumento tem certo ar de plausibilidade, mas parece entrar em choque com o procedimento adotado nas ciências; porque todas elas, embora visem a algum bem e procurem suprir a sua falta, deixam de lado o conhecimento do bem. Entretanto, não é provável que todos os expoentes das artes ignorem e nem sequer desejem conhecer auxílio tão valioso. Não se compreende, por outro lado, a vantagem que possa trazer a um tecelão ou a um carpinteiro esse conhecimento do "bem em si" no que toca à sua arte, ou que o homem que tenha considerado a Ideia em si venha a ser, por isso mesmo, melhor médico ou general. Porque o médico nem sequer parece estudar a saúde desse ponto de vista, mas sim a saúde do homem, ou talvez seja mais exato dizer a saúde de um indivíduo particular, pois é aos indivíduos que ele cura. Mas quanto a isso, basta.

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