sábado, abril 30, 2022

HORA ABSURDA. Fernando Pessoa. 145

 

Fernando Pessoa

 


HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas
             [ pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu
             [ sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e
             [ as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de
             [ qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se
             [ parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido,
             [ a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar
             [ traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a
             [ minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a
             [ idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio
             [ os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré
             [ cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana
             [ de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá fora... É em
             [ mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela
             [ escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que
             [ nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única
             [ estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca
             [ chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter
             [ sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as
             [ naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga
             [ sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe
             [ negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore
             [ que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me
             [ alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa
             [ nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos
             [ caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem
             [ chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das
             [ barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços
             [ daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as
             [ naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de
             [ vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os
             [ nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para
             [ si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque
             [ o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o
             [ olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele
             [ lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
             [ mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas,
             [ muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais
             [ haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias,
             [ brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se
             [ nuas ao luar.
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham
             [ partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de
             [ naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo
             [ fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos
             [ jardins de outrora
As próprias sombras estão mais tristes...
             [ Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão,
             [ e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que
             [ eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha
             [ alma...
As relvas de todos os prados foram frescas
             [ sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares
             [ calma,
E eu ver isso em ti e um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...
             [ Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...
             [ Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com
             [ pedras raras...
Minha alma é una lâmpada que se apagou e
             [ ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao
             [ sol!
Todas as princesas sentiram o seio
             [ oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas
             [ no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões
             [ nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale...
             [ Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na
             [ aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que
             [ está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que
             [ penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...
             [ Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como
             [ medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor
             [ de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não
             [ perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é
             [ um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria
             [ tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora
             [ não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos
             [ os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia
             [ no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios
             [ eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio
             [ mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar
             [ sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de
             [ virgens que tecem..
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher
             [ que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o
             [ tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as
             [ pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas
             [ as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, com um ruído
             [ brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens
             [ que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
    [ mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
             [ nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
             [ auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica
             [ desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande
             [ sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é
             [ uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a
             [ meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo
             [ vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma
             [ bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta
             [ pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro
             [ este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face
             [ calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios
             [ medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a
             [ sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além
             [ dos sonhos...

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