Progressos da compreensão e progressos da incompreensão: história e filologia.
Olavo de Carvalho
À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos, sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão da obra. Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido como Metafísica resulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste sentido.
À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-los.
(continua)
sábado, agosto 24, 2019
Progressos da compreensão e progressos da incompreensão: história e filologia. Olavo de Carvalho.
Marcadores:Charles Fonseca,....Charles Fonseca,
Filosofia,
Olavo de Carvalho
Escreva para o meu e-mail: silvafonseca@gmail.com
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário