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quarta-feira, janeiro 04, 2017

A morte do perdão em Rousseau. André Marroig. Prosa

A MORTE DO PERDÃO EM ROUSSEAU

Não há como não tirar o chapéu diante do brilhantismo de Rousseau. Mas, contrariamente ao que muitos pensam, a perfeição primeva proposta pelo filósofo é a conclusão e não o “bojo” de sua teorização. É o final de um conflito teológico com o intuito de anular a necessidade do perdão como condição sine qua non para as relações humanas. É óbvio que o inocente não necessita de perdão, mas diante da própria natureza humana, quem é inocente?
O pecado original, e podemos optar por isentá-lo do seu cunho teológico, é uma metáfora de nossa natureza há muito descrita. Desde os gregos pré-socráticos a noção de que somos “carregados de paixões”, passando pelo pessimismo schopenhauriano e adentrando a psicanálise com o “princípio do prazer” freudiano, a noção de uma natureza humana com componentes carregados de um “bem”, mas com forte propensão ao “mal”, sempre fora clara.
Rousseau, percebendo a crise na cristandade na primeira metade do século XVIII, apropriou-se dos impasses e ofertou com maestria uma nova cosmovisão, agora reivindicando para si uma posição messiânica e relatora. Juntemos a isso um talento refinado para a escrita e encontramos o cerne de uma série de pensamentos e políticas que cimentaram e ainda estruturam a contemporaneidade.
De uma forma bem simplificada, tentarei trazer-lhes a maestria com que Rousseau subverte este conceito de pecado original para alçar-se aos píncaros de sua messiânica nova posição. Diante de alguém que praticou algo lesivo, situa-se o direito da vítima em puni-lo. O direito de perdoar estaria atrelado, portanto, ao direito de punição. A opção por perdoar em detrimento ao punir, por si só, impulsiona a vítima a uma posição de prestígio diante do outro pelos sublimes valores associados. Tal posicionamento acaba por aumentar a desigualdade entre o transgressor e a vítima, que agora posiciona-se de forma superior impulsionada pelas suas escolhas. O “perdão” então ampliaria as desigualdades entre ambos. Para anular as desigualdades no sistema rousseauniano, haveria, portanto, a necessidade de abolir o perdão, e a proclamação de uma perfeição primeva. Todos seriam perfeitos por natureza, e a subversão dos mesmos aconteceria por “forças externas”, ou seja, “o meio”. Compreendes a base do vitimismo contemporâneo?
Um pouco mais profundamente percebemos que Rousseau inverte a noção judaico-cristã de uma antecedência do perdão ante o pecado. Para o desatento leitor, o conceito de que, para que haja o perdão, previamente deve ter havido o pecado, parece cognitivamente mais aceitável. Porém somente o perdão é capaz de revelar e iniciar o movimento de reparação. A acusação pura e simples da culpabilidade do transgressor nada resolve e, na maioria das vezes, somente instila no outro um movimento reativo. A capacidade da vítima de perdoar é a única capaz de disparar no outro o movimento reparatório. Transpondo para a psicanálise, evoco Winnicott e seu conceito de amadurecimento da agressividade. Winnicott nos mostra que o bebê ao buscar sua saciedade e prazer, usa o outro de forma “impiedosa”. A destruição deste outro como consequência, passa completamente despercebida diante da satisfação de suas necessidades. Se o objeto o qual é alvo desta destrutibilidade mantém-se ali, sustenta a si e o agressor e não devolve na mesma moeda, impulsiona o bebê a um amadurecimento. Nesse novo estágio, o bebê, se o objeto vitimado continuar mantendo-se ali e não “devolvendo na mesma moeda”, passa a perceber este outro como algo “bom” e inicia um movimento reparatório cujo sintoma é a culpa. Ou seja, anteceder o pecado sobre o perdão é expor ao agressor sua transgressão pura e simplesmente. O mesmo provavelmente devolverá a acusação ao seu acusador perpetuando a cadeia reativa.
Rousseau ao propor quebrar esta cadeia reativa antecedendo o pecado ao perdão, fundamento cristão básico, viu-se refém de sua própria armadilha, restando ao seu sistema uma única alternativa; o contrato social. Ao “libertar” a humanidade do perdão, restou-nos uma ampliação na vigilância no exercício das virtudes e a crença na existência de uma natureza humana carregada de perfeição. É na vigilância do outro em prol “do bem coletivo”, cada vez mais intensa e tirânica, que baseia-se a práxis do sistema rousseauniano. E se a base do mesmo é perfeita, podemos lapidá-los para um retorno a esta inocência primeva. Conseguimos assim compreender a tirania do “politicamente correto” e a intolerância com qualquer opinião contrária a das massas e também os inúmeros mecanismos de engenharia social. As políticas doutrinatórias e a engenharia social intensiva baseiam-se na crença desta falácia criada por Rousseau diante do desamparo humano restante após a morte de Deus.
A destruição da necessidade do perdão impulsiona o indivíduo ao narcisismo e a solidão inerente ao mesmo. Por outro lado, na ausência dos mecanismos de culpa e perdão, resta-nos somente como mecanismo relacional com um outro, o contrato social, como já disse. Como consequência, qualquer interesse pessoal deve ser rechaçado em prol desta coletividade. Inaugura-se assim a noção de um inimigo comum, qualquer individualidade.
Rousseau ao propor a “libertação” do perdão e da culpa acaba por impulsionar-nos a um sistema muito mais opressor, onde cada cidadão tem por obrigação movimentar-se em prol da construção de uma “virtuosa” sociedade. A sujeição a uma ideia soberana de virtuosidade com o intuito da recuperação de um suposto estado primevo de purificação e “imaculação” moldam um modelo supremamente autoritário. A expulsão de um mal supostamente absoluto (o desejo individual) em prol de um bem também supostamente absoluto (o desejo coletivo), ou seja, a polarização esquizoparanóide a que venho denunciando já há algum tempo, passa a basear-se em um modelo educacional (cognitivo), e com consequente racionalização da vida. Destroem-se assim as contradições inerentes ao humano e toda a individualidade. O ensino como uma ferramenta, torna-se doutrinatório e posiciona-se completamente em prol do projeto.

André Marroig

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