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segunda-feira, agosto 30, 2010

Sermão do Bom Ladrão. Padre Antonio Vieira. Prosa

Sermão do Bom Ladrão
Padre Antonio Vieira

Mas estou vendo que com este mesmo exemplo de Deus se desculpam ou podem desculpar os reis, porque, se a Deus lhe sucedeu tão mal com Adão, conhecendo muito bem Deus o que ele havia de ser, que muito é que suceda o mesmo aos reis, com os homens que elegem para os ofícios, se eles não sabem nem podem saber o que depois farão? A desculpa é aparente, mas tão falsa como mal fundada, porque Deus não faz eleição dos homens pelo que sabe que hão de ser, senão pelo que de presente são. Bem sabia Cristo que Judas havia de ser ladrão; mas quando o elegeu para o ofício em que o foi, não só não era ladrão, mas muito digno de se lhe fiar o cuidado de guardar e distribuir as esmolas dos pobres. Elejam assim os reis as pessoas, e provejam assim os ofícios, e Deus os desobrigará nesta parte da restituição. Porém as eleições e provimentos que se usam não se fazem assim. Querem saber os reis se os que provêem nos ofícios são ladrões ou não? Observem a regra de Cristo: Qui non intral per ostium, jur est et latro (14). A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão, senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a diferença de fur a latro.

Coisa é certo maravilhosa ver a alguns tão introduzidos e tão entrados, não entrando pela porta nem podendo entrar por ela. Se entraram pelas janelas, como aqueles ladrões de que faz menção Joel: Per fenestras intrabunt quasi fur (15), grande desgraça é que, sendo as janelas feitas para entrar a luz e o ar, entrem por elas as trevas e os desares. Se entraram minando a casa do pai de famílias, como o ladrão da parábola de Cristo: Si sciret pater familias qua hora fur veniret, non sineret perfodi domum suam(16), ainda seria maior desgraça que o sono, ou letargo do dono da casa fosse tão pesado que, minando-se-lhe as paredes, não o espertassem os golpes. Mas o que excede toda a admiração é que haja quem, achando a porta fechada, empreenda entrar por cima dos telhados, e o consiga, e mais sem ter pés, nem mãos, quanto mais asas. Estava Cristo, Senhor nosso, curando milagrosamente os enfermos dentro em uma casa, e era tanto o concurso que, não podendo os que levavam um paralítico entrar pela porta, subiram-se com ele ao telhado, e por cima do telhado o introduziram. Ainda e mais admirável a consideração do sujeito, que o modo e lugar da introdução. Um homem que entrasse por cima dos telhados, quem não havia de julgar que era caído do céu: Tertius e caelo cecidit Cato? (17) E o tal homem era um paralítico que não tinha pés, nem mãos, nem sentido, nem movimento, mas teve com que pagar a quatro homens, que o tomaram às costas, e o subiram tão alto.

E como os que trazem às costas semelhantes sujeitos estão tão pagos deles, que muito é que digam e informem — posto que sejam tão incapazes — que lhes sobejam merecimentos por cima dos telhados. Como não podem alegar façanhas de quem não tem mãos, dizem virtudes e bondades. Dizem que, com seus procedimentos, cativa a todos. E como não havia de cativar, se os comprou? Dizem que, fazendo sua obrigação, todos lhe ficam devendo dinheiro: e como lho não hão de dever, se lho tomaram? Deixo os que sobem aos postos pelos cabelos, e não com as forças de Sansão, senão com os favores de Dalila. Deixo os que, com voz conhecida de Jacó, levam a bênção de Esaú, e não com as luvas calçadas, senão dadas ou prometidas. Deixo os que, sendo mais leprosos que Naamã Siro, se alimparam da lepra, e não com as águas do Jordão, senão com as do Rio da Prata. É isto, e o mais que se podia dizer, entrar pela porta? Claro está que não. Pois se nada disto se faz: Sicut fur in nocte (18), senão na face do sol, e na luz do meio-dia, como se pode escusar quem ao menos firma os provimentos de que não conhecia serem ladrões os que por estes meios foram providos? Finalmente, ou os conhecia, ou não: se os não conhecia, como os proveu sem os conhecer? E se os conhecia, como os proveu conhecendo-os? Mas vamos aos providos com expresso conhecimento de suas qualidades.
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