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quinta-feira, agosto 06, 2009

Sermão do Bom Ladrão Padre Antonio Vieira. 1655

Sermão do Bom Ladrão
Padre Antonio Vieira. 1655

IV

Suposta esta primeira verdade certa e infalível, a segunda coisa que suponho com a mesma certeza é que a restituição do alheio, sob pena da salvação, não só obriga aos súditos e particulares, senão também aos cetros e às coroas. Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes que, assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo, e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; e enquanto lei divina também os obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles. Esta verdade só tem contra si a prática e o uso. Mas por parte deste mesmo uso argumenta assim Santo Tomás, o qual é hoje o meu doutor, e nestas matérias o de maior autoridade: Terrarum principes multa a suis subditis violenter extorquent, quod videtur ad rationem rapinae pertinere; grave autem videtur dicere, quod in hoc peccent, quia sic fere omnes principes damnarentur. Ergo rapina in aliquo quo casu est licita. Quer dizer: A rapina ou roubo é tomar o alheio violentamente contra a vontade de seu dono; os príncipes tomam muitas coisas a seus vassalos violentamente, e contra sua vontade: logo, parece que o roubo é lícito em alguns casos, porque, se dissermos que os príncipes pecam nisto, todos eles, ou quase todos se condenariam: Fere omnes principes damnarentur. Oh! que terrível e temerosa conseqüência, e quão digna de que a considerem profundamente os príncipes, e os que têm parte em suas resoluções e conselhos! Responde ao seu argumento o mesmo Doutor Angélico, e, posto que não costumo molestar os ouvintes com latins largos, hei de referir as suas próprias palavras: Dicendum, quod si principes a subditis exigunt quod eis secundum justitiam debetur propter bonum commune conservandum, etiam si violentia adhibeatur; non est rapina. Si vero aliquid principes idebite extorqueant, rapina est, sicut et latrocinium. Unde ad restitutionem tenentur sicut et latrones. Et tanto gravius peccant quam latrones, quanto periculosius et communius contra publicam justitiam agunt, cujus custodes sunt positi: Respondo — diz Santo Tomás — que se os príncipes tiram dos súditos o que segundo justiça lhes é devido para conversação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina ou roubo. Porém, se os príncipes tomarem por violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde se segue que estão obrigado à restituição, como os ladrões, e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o dano com que ofendem a justiça pública, de que eles estão postos por defensores.

Até aqui acerca dos príncipes o Príncipe dos Teólogos. E por que a palavra rapina e latrocínio, aplicada a sujeitos da suprema esfera, é tão alheia das lisonjas que estão costumados a ouvir, que parece conter alguma dissonância, escusa tacitamente o seu modo de falar, e prova a sua doutrina o santo Doutor com dois textos alheios, um divino, do profeta Ezequiel, e outro pouco menos que divino, de Santo Agostinho. O texto de Ezequiel é parte do relatório das culpas por que Deus castigou tão severamente os dois reinos de Israel e Judá, um com o cativeiro dos assírios, e outro com o dos babilônios; e a causa que dá, e muito pondera, é que os seus príncipes, em vez de guardarem os povos como pastores, os roubavam como lobos: Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam (9).Só dois reis elegeu Deus por si mesmo, que foram Saul e Davi, e a ambos os tirou de pastores, para que, pela experiência dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam de tratar os vassalos; mas seus sucessores, por ambição e cobiça, degeneraram tanto deste amor e deste cuidado que, em vez de os guardar e apascentar como ovelhas, os roubavam e comiam como lobos: Quasi lupi rapientes praedam.

O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estóico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos, em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloqüentes mudos que mais ofendem os reis com o que calam, que com o que disserem, porque a confiança com que isto se diz é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala é argumento de que se ofenderão, porque lhes pode tocar. Mas passemos brevemente à terceira e última suposição, que todas três são necessárias para chegarmos ao ponto.

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