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quarta-feira, abril 19, 2017

Uma análise psiquiátrica do rapaz que desapareceu. MFC

UMA ANÁLISE PSIQUIÁTRICA DO RAPAZ , hoje DESAPARECIDO, QUE SE ISOLOU, ESCREVEU 14 LIVROS EM LINGUAGEM CIFRADA, JULGAVA-SE REENCARNAÇÃO DO FILÓSOFO GIORDANO BRUNO.
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A análise psiquiátrica abaixo não é voltada especificamente para esse caso, que não examinamos pessoalmente, ( e sim apenas por meio de dados da imprensa ) , mas sim para casos semelhantes - que são bem frequentes - , ou seja com estrutura psicopatológica aparentada.
Era um rapaz muito inteligente, estudante universitário de psicologia, escrevia sobre filosofia, cosmologia. A mãe , que também é psicóloga, não julgava que ele tivesse algum problema mental. Ficava o tempo quase todo fechado num quarto, colocou uma estátua de Giordano Bruno bem grande no meio do quarto. Dizem que sua fixação pelo filósofo ( de quem se julga a reencarnação ) dever-se-ia ao seu nome, que também é Bruno.
Muitos amigos(as) me escreveram para opinar ou pedir opiniões sobre casos como esses. Ficaram até meio assustados quando eu disse que esse tipo de situação é comum em psiquiatria. As pessoas tendem a imaginar que tudo em psiquiatria é “loucura”, “doido”, sendo que, na prática médica psiquiátrica, aproximadamente 80% dos pacientes não apresentam “loucura” nenhuma. Isso é conhecido desde Pinel, que cunhou o termo de “mania lúcida”; depois veio seu aluno Esquirol , que falou de “monomanias”, e depois dele Delasieuve, Falret, Baillarger, que discutiam a “folie raisonnante”, ou seja, “loucura racional”, ou “psicose raciocinante”. Tratados psiquiátricos de autores alemães, já no decorrer de todo o século XIX, tais como os de Kraepelin, Kraft-Ebing, Schülle, todos contêm capítulos inteiros dedicados às “psicoses racionais”. Ou seja, a psiquiatria, desde os seus primórdios, reconhece pessoas que raciocinam bem, até de forma genial, mas mesmo assim estão acometidas de graves transtornos, inclusive em nível psicótico.
Muitos pacientes obsessivos atingem o nível do delírio, da psicose. A obsessão é um dos modos que o paciente tem de controlar uma ansiedade; pode ser um tipo de controle tanto motor - que as vezes assume a forma de rituais, às vezes até a forma de tiques - quanto intelectual : pacientes que entregam-se obsessivamente à cálculos, temas, leituras, religiosidades. As obsessões, tanto as motoras quanto as intelectuais, têm o poder de diminuir a ansiedade ou estados interiores de tensão.
Muitos obsessivos , além da ansiedade, podem estar também propensos à uma “energia aumentada”, como se vê na doença bipolar. Aliás, é muito comum a associação entre a doença bipolar e situações obsessivo-compulsivas. Esta “energia aumentada” pode dar ao paciente uma dimensão um tanto megalomaníaca, uma energia tão intensa, que pode beirar à uma enorme profusão de pensamentos, à genialidade. O paciente sabe-se um “gênio”, ou uma pessoa de uma “espécie diferente”, uma outra estirpe, uma outra ordem, reencarnação de uma figura histórica, descendente de alguma ordem extra-galática, extra-terrestre ( a teoria dos “anjos decaídos”, a teoria dos “deuses astronautas”, a teoria dos “gigantes bíblicos”, a teoria da “queda do paraíso”, a teoria dos “exilados de Capela” ). Ou seja, a própria cultura humana é cheia de ideias de “seres superiores” que estão entre nós mas pertencem a uma outra ordem, outra dimensão, outro planeta. Talvez daí venham as ideias do rapaz que se julgava a reencarnação do filósofo-astrônomo Giordano Bruno, tanto é que, num dos quadros encontrados em seu quarto há uma pintura de Giordano sendo tocado por um extraterrestre.
A simbologia, os quadros, a estátua, tudo isto encontrado no quarto de Bruno ( é o nome do rapaz que se julgava a reencarnação de Giordano Bruno ), a ordenação perfeita, a limpeza cirúrgica, as paredes lisas e brancas, impecavelmente cobertas de escritos esotéricos, tudo isso fala a favor de uma necessidade e de um gosto pela ordem. A ordem é necessária ao obsessivo, tanto a ordem interna quanto a ordem externa. A ordem externa, sendo uma projeção da ordem interna, acaba servindo de um espelho reforçador para o ego, ou seja, é uma projeção do eu que serve de espelho para o próprio eu. Nesse espelho projetado o ego reforça sua convicção de que é especial , reforça sua ideia de proteção segura, sua “ordem”, sua regularidade, seu controle sobre o mundo. O obsessivo projeta sua ordem no mundo e esta ordem que ele projetou ele a capta de novo e a usa como carapaça reforçadora do ego.
Estas projeções podem ter um caráter fantástico, autístico, até delirante, porque o paciente tende a isolar-se dos demais, tende a fechar-se em um hermetismo esotérico , místico, científico ou filosófico. Fecha-se porque , geralmente, tais quadros podem também ser acompanahdos por uma fobia social, depressão, personalidade esquizóide, variação autística de Asperger.
A isso ajunta-se a “estranheza” que é votada à pessoa intelectualizada no Brasil. A inteligência, no Brasil, sente-se um verdadeiro “alien”. Mais um elemento para fazer o paciente sentir-se como pertencendo à uma ordem mística, uma ordem escondida, criptogrrafada ( seus livros são escritos com linguagem secreta, ou seja, criptografada ). Pensa : “não me entendem, eu lido com coisas misteriosas, ninguém aqui gosta disso, me perseguem, perseguem o que é intelectual”. E, na continuidade disso : “ eu sou estranho, sou de outra estirpe, não entendem meu trabalho, talvez por eu ser de uma outra raça, uma ordem superior, herdeiro de extra-terrestres”.
Pacientes com quadro obsessivo/fóbico/depressivo também costumam ter medo, timidez, gosto pelo isolamento, caráter “esquizoide” da personalidade. O grande físico Newton era um protótipo disso : isolado, fazendo parte de “ordens secretas”, passou 90% de seu tempo de vida lidando com temas esotéricos ( p.ex., buscando coincidências cabalísticas na Bíblia) e só 10% lidando com temas propriamente científicos.
Mas nem tudo é só delírio, só psicopatologia, na mente dessas pessoas, há também coisas “sadias”, como p.ex., a alta inteligência de que eles são detentores ( vide Newton ). Seu misticismo hermético, esotérico, também não é algo que se possa julgar como patológico. Mesmo do ponto de vista histórico, sempre existiram as “ordens secretas”, por exemplo a Ordem Rosacruz, Maçons, a Ordem dos Faraós, no Antigo Egito, ordens que eram detentoras de conhecimentos desconhecidos para a plebe. O sentimento do “Sagrado” ( vide os estudos do teólogo Rudoph Otto ) é algo genuíno dentro da psicologia humana, e de fato, provavelmente remete à nossa ligação com a Ordem do Universo. Tais sentimentos profundos - ligação com o Sagrado, busca de uma Ordem Superior, ordem esta que se manifesta por meio de nossa Consciência - existem em praticamente todas as eras, todas as mentes, de uma forma ou de outra. Por exemplo, o grande sucesso da série cinematográfica Matrix , provavelmente deve-se à sua reflexão sobre um “outro mundo”, uma “outra ordem”, uma “ordem escondida” do Universo, que se manifesta em nosso Mundo de modo disfarçado, enevoado, esfumaçado.
À consciência de “ser um elemento de outra ordem”, de ser um “indivíduo não-compreendido”, pode ajuntar-se àquela de ser perseguido, “se souberem de mim irão me atacar”, “assim como os mutantes do Prof. Xavier ( “X-Men”) eu serei atacado, pois sou diferente”.
Outro elemento sadio, normal, da personalidade, que se manifesta em casos como o de Bruno ( o rapaz “Giordano Bruno” ) , é aquele do “instinto laboral”, o “gosto pelo trabalho”, o gosto pelo controle do ambiente externo, gosto pela ordem do mundo, e, consequentemente, pela “ordem intelectual”. A obsessão psicopatológica, muitas vezes, nada mais é do que um exagero patológico dessas tendências normais. No Brasil, como o intelecto dificilmente encontra meios para manifestar-se, o delírio passa a ser, desta forma, “estimulado” pela ignorância do país. O problema é que as pessoas obsessivas, com frequência, também são isolados, e o isolamento propicia o viscejar e a piora do delírio. Muitos conteúdos delirantes , na verdade, são conteúdos da psicologia pessoal, fruto de um isolamento comunicativo com os demais. A comunicação com o próximo tem o poder de “polir”, aplainar, esmerilar, lapidar, nossas ideias, funcionando , assim, como um elemento “anti-delírio”. O isolamento obsessivo/depressivo/fóbico, portanto, propicia o surgimento e fortalecimento de ideias delirantes.
Isolado, muitas vezes, o obsessivo/depressivo/fóbico/delirante, projeta o seu ego em uma figura exterior, uma estátua, uma “reencarnação”, um nome, um título, uma profissão, uma “missão”. É um meio do indivíduo sentir-se menos sozinho, pois essa “projeção” serve de companhia ao seu próprio ego. É uma espécie de “identificação projetiva” ( descrita por Melanie Klein ) , ou seja, o indivíduo identifica-se com sua própria projeção psíquica. Vemos como, no caso de Bruno, como ele queria identificar-se fortemente com o filósofo/astrônomo/teólogo Giordano. Essa identificação cria um “amigo externo”, uma “companhia para a sua solidão”. E lhe aumenta a sensação de “ordem” , de controle, pois é uma “ordem” que está fora dele, está no mundo material, está no mundo concreto. A intensa simbologia, a intensa iconografia ( fotos, gráficos, estátuas, carimbos, placas, dísticos, frases lapidares, etc ) tudo isso cria a sensação de que a “ordem é vivida no mundo real” - e não apenas “pensada”, não apenas psíquica/abstrata, mas sim real,objetiva, concreta, objetificada.

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Marcelo Caixeta, médico psiquiatra ( hospitalasmigo@gmail.com ) . Escreve às terças, sextas, domingos, no Diário da Manhã ( acesso gratuito em www.impresso.dm.com.br )

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