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sexta-feira, julho 24, 2015

A profissão impossível. Marcelo Ferreira Caixeta

A PROFISSÃO IMPOSSÍVEL : PORQUE, HOJE EM DIA NO BRASIL, É CADA VEZ MAIS PERIGOSO SER UM BOM MÉDICO.

Marcelo Ferreira Caixeta

A PROFISSÃO IMPOSSÍVEL : PORQUE, HOJE EM DIA NO BRASIL, É CADA VEZ MAIS PERIGOSO SER UM BOM MÉDICO.
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Há poucos dias, em Goiânia, uma paciente, 24 anos, dona-de-casa, mãe de dois filhos, morreu de uma doença disseminada, epidêmica, mas pouco conhecida, chamada “conluio do anonimato” . Esta doença foi descoberta pelo psiquiatra húngaro M. Balint, relatada em seu livro “O médico, seu paciente e a doença”. A paciente citada, com acidente vascular hemorrágico, ou seja, artéria sangrando dentro do cérebro, peregrinou por 10 hospitais de Goiânia, sem que nenhum tivesse assumido seu caso prá valer; médicos e hospitais se esconderam no “anonimato de uma rede complexa”, hospitalar, governamental, conveniada com o SUS, privada, dentro da qual “ninguém é dono do paciente”. Agora, após a morte, fala-se em “punir culpados”, mas, eu pergunto, “que culpados?”. Os dez hospitais ? As dezenas de médicos pelos quais ela passou ? Os gestores públicos, os governadores, a presidente, os prefeitos ? Nenhum deles, a culpa está estrategicamente diluída. Um dos motivos pelos quais os donos de hospitais particulares estão fechando seus estabelecimentos é este : não querem mais ficar na linha de frente, como pessoa física, como sujeitos a processos e indenizações. Querem, como as instâncias governamentais, como os “médicos de convênio”, como os “hospitais dos planos de saúde”, diluírem a culpa... e assim livrarem-se dela.
Nos convênios médicos é assim, vou citar exemplos concretos. Chega em nosso hospital psiquiátrico uma senhora com 83 anos de idade, quase morta de tanto remédio, de tantas condutas médicas, de tanta intoxicação e intervenções, procedimentos, etc. Dizem que ela tem diabetes, hipertensão, hipotiroidismo, parkinson, depressão, psicose, ileo paralítico ( “intestino que não funciona” ), epilepsia, AVC, excesso de ácido úrico, falta de vitamina B12, etc. Aí a gente interna a paciente e começa a investigar, vai tirando remédio para diabetes, vai tirando remédio para hipertensão, para tireoide, etc, etc, no final não sobra quase nada. Ou seja, a paciente estava sendo “morta” por tanto entulho de remédios e diagnósticos que ela estava recebendo por médicos “superficiais”, cada um “tratando” os efeitos colaterais que o outro “médico superficial” produziu. E nenhum coordenando nada, nenhum pensando o quadro dela como um todo. Diriam eles : “mas como você quer que a gente se debruce sobre um quadro complicado destes ganhando 40 reais por consulta ? ( é 70, mas retirando taxas, impostos, secretária, aluguel, consultório, condomínio, conselho de medicina, sindicato, combustível, telefone, etc, só sobra isto mesmo ) . Ou seja, a paciente é de todo mundo mas não é de ninguém, ninguém se responsabiliza por ela, ninguém, de fato, “sabe o que está acontecendo”. No SUS, nem precisa falar, é pior ainda. No mundo hospitalar, o mesmo problema se aplica. Aí, se aparece um médico, um hospital, que resolve “assumir” tudo, pegar no chifre do boi, são estes que irão levar chumbo da família, pois estes são “pessoa física”, são “pessoas-em-carne-e-osso”. Estes estão ali para o que der e vier e, como todos sabem, as maiores decepções a gente tem com quem a gente mais ajudou, com quem a gente mais deu amor. Quando estoura um problema, quando morre alguém, quando as sequelas advêm, aí os parentes, os pacientes, vêem em cima de quem está ali. Eles não vão em cima da “cadeia enorme de anonimato” que só “deu uma olhadinha, fez um examezinho, fez um diagnoticozinho, deu uma dicazinha, e passou por cima, lavou as mãos”. Você que está ali, “segurando o boi pelo chifre”, é que vai levar fumo... Vai levar as reclamações e os processos daquela família. O resto apenas faturou o seu e vazou, mas quem ficou é quem se lasca. Hospitais conveniados, médicos conveniados, sejam pelo SUS, sejam por convênios, sempre terão esta desculpa : “é problema do Governo, é problema do Convênio”, é o Governo que não deu condições, é o plano de saúde que não deu condições. Os próprios médicos, em sua maioria, preferem trabalhar nestas condições de anonimato, por isto os “clínicos de consultório”, os “clínicos de beira-de-leito”, estão desaparecendo, você não acha mais um médico que “cuide” de fato de seu parente, de você mesmo. Cada um só quer ser uma “parte da engrenagem”, justamente para, na hora do pepino, “ele não ter nada a ver com a aquilo”. No caso mesmo desta dona-de-casa que morreu com AVC, agora cada um dilui a sua culpa : “não tínhamos neurocirurgião”, “não tinhamos aparelhos de neuroradiologia intervencionista”, “não fomos notificados, ela chegou andando no hospital”, “enquanto ficou aqui, por uns poucos dias, poucas horas, não apresentou estes problemas”, “encaminhamos para fazer exames”, “encaminhamos para fazer cirurgia”, “o hospital X ou a central de regulação Y não autorizou o procedimento”, etc. Ou seja, é uma teia tão grande de “anonimato” que todos se protegem debaixo dela e passa a ser praticamente impossível julgar responsabilidades no meio de uma selva tão escura. “Bobo”, então, do médico e do hospital que, hoje em dia, resolverem “assumir” qualquer paciente, todo o peso da responsabilidade recairá sobre ele. Isto é outra coisa que sofro em nosso hospital; a gente tenta tratar o paciente do melhor modo possível, com toda individualidade, mas aí “os santos pagam pelos pecadores”, ontem mesmo uma paciente disse : “eu vou filmar o que vocês estão dizendo, vou filmar o que vocês estão fazendo comigo” ( isto porque ela queria dois colchões em sua cama, por causa de problemas de coluna ). É uma paciente com problemas muito graves e que, modestia a parte, nunca havia sido examinada e acompanhada com tanto denodo ( até 5 visitas médicas por dia, duas juntas médicas por dia ). Ela ficou num hospital onde, segundo ela, em 30 dias, fora “vista” apenas duas vezes, ou seja, uma vez a cada 15 dias. Nunca falou em “processar” esta clínica, agora, no nosso hospital, onde recebeu uma atenção que nunca havia recebido, quer “filmar, gravar e processar”. Quer fazer isto porque aqui o nosso hospital tem um nome, tem uma individualidade, tem uma “pessoa física”, ao passo que, nos locais onde ela passou, tanto ela era diluída enquanto pessoa física ( não passava de um número ) quanto os próprios serviços médico-hospitalares eram impessoais... De modo que, hoje, em medicina, quanto melhor você trabalha, ou tenta trabalhar, pior prá você.

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