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terça-feira, junho 30, 2015

Na hora de ratificar. Millôr Fernandes. Fábula

Na hora de ratificar
Millôr Fernandes

Foi difícil, dado um individualismo inato, mas, afinal, depois de muitas parlamentações ocasionais e parciais, houve a grande reunião da rataria. Havia problemas graves, urgentes e coletivos a tratar. Um deles, claro, era como lidar com a prepotência cada vez maior do inimigo comum e maior: o Gato. Antes mesmo de aberta a sessão, alguém gritou: “Senta! Senta!, embora ninguém estivesse de pé, mas numa reunião dessas há sempre a necessidade de uma afirmação de personalidade. Iniciados os trabalhos, um dos ratos, pedante, colocou primeiro a questão filosófica do ratocentrismo, para combater a petulância do homem que faz do mundo uma coisa homocêntrica: “Vivem reclamando, irmãos, que estamos nos multiplicando demais, já existem
quatro ratos pra cada homem e esquecem nosso terror de saber que já existe um homem pra cada quatro ratos. Temos que lutar por um mundo ratocêntrico”. Outro ratão se ergueu e declarou que era preciso uma determinação da idade em que pintos podiam ser comidos, pois os ratos estavam sendo acusados de genocídio nos galinheiros, o que não era bom pra imagem dos roedores. Logo em seguida levantou-se uma rata e declarou que era necessário que todos se tratassem de camaradas e não falassem em ratos e roedores, palavras discriminatoriamente machistas. Ao que um dos machistas retrucou que quando se vê um rato grande todo mundo chama logo, discriminadamente, de ratazana, fazendo a aparteante calar o bico, i.e., o focinho. O moderador
da discussão disse que estavam se desviando do assunto, que era: como deter o avanço cada vez mais feroz do inimigo Gato. “Proponho uma solução clássica”, disse um camundongo. “Amarramos um guizo no pescoço do
Gato”. E antes que alguém o ridicularizasse ajuntou: “Sei que isso já foi ridicularizado nas fábulas, mas tenho uma solução comprometida: entrei em contacto com nosso velho aliado, o Cão, e ele está disposto a amarrar o guizo no gato pra nós, desde que ...” No momento exato em que ele dizia isso, o Cão e o Gato entraram no porão em que estavam os ratos e obstruíram as saídas com o corpo. O Cão latiu: “Bom, bom; eu disse que ajudava, desde que fosse uma decisão democrática. Mas vocês esqueceram justamente de nos
convidar, a mim e ao Gato, de modo que resolvi me filiar ao partido dele. Sugiro, dada inclusive a evidente minoria em que estamos, que se ouça pelo menos a proposta do Gato”. O Gato, modesto, propôs apenas que, antes de qualquer coisa, se chamasse uma firma especializada, e se fizesse uma desratização ali no porão. Os ratos então, vendo que não havia saída, votaram todos com o Gato.

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