Pesquisar este blog

quarta-feira, junho 10, 2015

Em que aparece a orelha de uma senhora. Machado de Assis. Prosa

Em que aparece a orelha de uma senhora
Machado de Assis

Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéa fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é deante de tão excelso espectáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava peor; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes.
Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um século, e a figurar nas folhas públicas, entre macróbios. Tinha saúde e robustez. Suponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens.

Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína. Imagine o leitor que nos amámos, ela e eu, muitos anos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova...

Nenhum comentário:

Postar um comentário