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sexta-feira, julho 23, 2010

PROSA

No Caminho de Swann
Proust (Tradução Mário Quintana)

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava a minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastado e marcando as distâncias como o canto de um pássaro numa floresta, me descrevia a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à parada próxima: o caminho que ele segue lhe vai ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.
http://culturadetravesseiro.blogspot.com/

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