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quinta-feira, setembro 13, 2018

A última. Emmanuel Evangelos Haji Antoniou. Prosa.

A última.
Emmanuel Evangelos Haji Antoniou

Quem não é daqui não faz ideia. Pode ser um tanto óbvia essa afirmação, já que em qualquer lugar do mundo ela pode ser aplicada. Mas aqui é um tanto mais evidente.
A gente desta terra não nasce aqui. Brota. Mesmo aquele que veio de longe, se obriga a fincar as raízes profundamente no solo ressequido. Aos poucos vai absorvendo a seiva que vem das profundezas. A cor da pele fica ocre. Um amarelo avermelhado que se confunde com a poeira e a folhagem.
Curtida pelo sol assume a característica ressecada do cerrado. Fica dura, espessa. Enruga e amarfanha. Resiste ao calor, a poeira que cobre as vastidões dos planaltos. O povo daqui vive daquilo que a natureza dá. E tenta sobreviver ao que Deus tira.
Os pais entram ansiosos, acabrunhados. Nota-se nos olhos o desespero. Da garganta vem o pedido angustiado. Seco.
"- O senhor cuida dela?"
A menina tem seus três anos. Amedrontada e tímida como qualquer criança fica aninhada com a mãe que a abraça com força.
"-Sabe, só ficou ela. Minha outra filha morreu na semana passada." A Voz sai como um sussurro, uma prece lúgubre. "Com o susto perdi o bebê que estava esperando. Tinha dois meses."
Os olhos da mãe agora marejam, e ela segura mais forte a menininha. O pai tenta se mostrar forte.
Essa gente chora pra dentro. Não verte água. Seus olhos se abaixam, os lábios tremem, o corpo murcha.
Escuto o caso da que se foi. Vítima das
imensas distâncias no poeral. Longe da cidade, longe dos homens e de sua Medicina. Acabou em uma sem recursos. Seus recursos também se acabaram lá. Aqui as coisas vem em ciclos. A chuva, a safra, o dinheiro. Acabados estes resta esperar a próxima e se aguentar com o que resta.
"Pneumonia", diz a mãe. O pai acabrunhado apenas acena com a cabeça.
Examino a pequena. Temerosa, desconfiada como qualquer outra criança. Não dá pra errar. Nunca dá. Mas agora mais ainda. Engulo o nó na garganta, fecho os olhos numa prece silenciosa:
"Senhor!"
Concluo o exame. Serão necessários outros. O pai me estende um maço de notas amarrotadas. Penso em recusar. Olho em seus olhos. Não há como fazê-lo. Seria um ultraje a sua honra. Uma afronta a sua dignidade. Não tem mais nada a oferecer. Aquele que tudo perdeu agora tudo dá por sua última esperança.
Aceito.
Nessas horas é que podemos fazer a diferença. Ligo para os amigos.
"A enfermeira consegue o encaixe?"
"O colega faz o exame?"
"Consigo o remédio pra hoje na farmácia?"
Os anjos e "anjas" da guarda me socorrem.
A família consegue ficar mais um dia na cidade.
"Só até amanhã. A licença vence e o serviço não espera. Não posso perder o emprego Doutor."
Amanhã então.
Exames feitos, tudo em ordem. O remédio fez efeito. A criança melhorou. Já sorri e brinca no colo da mãe.
Eles partem. Levam meu telefone, da clínica, celular. Retorno agendado e garantido. Um novo dia, um novo ciclo começa aqui no interior do Brasil.
Não será a última vez.

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