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domingo, março 11, 2018

Quem vai "destruir" este médico? Marcelo Caixeta.

Sei que vou ser “destruído” pela opinião que vou emitir , mas acho isso bom, estou em busca é de críticas mesmo ( claro, desde que sejam construtivas e com respeito ). Minha opinião - que é a de todo mundo que ainda não entrou em Medicina, ou não passou em Residência - é abominada por aqueles que já passaram ou já entraram.
A tese é a seguinte : o Brasil precisa, sim, de mais médicos e mais especialistas ( não sou diretor de faculdade, não sou diretor de pós-graduação médica, não sou empresário de ensino médico ou pós-graduado, ou seja, não ganho dinheiro com isso – é bom ir avisando, nesses tempos de necessária transparência) .
Na viagem vertiginosa e caótica que se segue abaixo, tento demonstrar como a mente do médico brasileiro foi distorcida por um modelo que associa uma grande intervenção estatal ( políticas de “esquerda”) com um grande corporativismo ( políticas de “direita” ).
Não me preocupo muito com os “absurdos” que vou dizer abaixo porque, como o raciocínio é extremamente longo e “enfadonho”, poucos médicos irão ter “paciência com o textão”, irão pulá-lo rapidamente. Isso só fará corroborar uma de minhas teses : o intelecto do médico brasileiro é “treinado na Universidade para ser rasteiro”, ser superficial.

Como sempre gosto de fazer, começo meu “estudo” a partir de “casos clínicos reais”, recolhidos via depoimentos nas redes sociais, ou via nosso grupo de pesquisas em psicologia médica. Vou dar alguns dados práticos :

1. O colega médico me diz : “ontem, ao levar meu pai em uma UTI, fui recebido pelo médico de plantão, que me atendeu no corredor, me ouviu 3 minutos, e já disse que “tinha entendido tudo”. Ora, é um caso complicadíssimo, de uma insuficiência cardíaca grau IV, acidente vascular encefálico, hipopotassemia, hiperaldosteronismo, anemia perniciosa macrocítica, hipovitaminose cianocobalamínica/hidroxicobalamínica, hiperhomocisteinemia com síndrome de hipercoagulabilidade, betabloqueador necessário para ICC bradicardizando demais, espironolactona levando a anorexia, etc, etc. Era caso para um relato de no mínimo 40 minutos, o colega me ouviu por 3 minutos, no corredor”. Como sempre, , como todo médico brasileiro, “corrido”, cheio de pacientes, correndo de um lado para outro, ganhando pouco em todos esses lugares, etc.
2. Quando eu fiz residência na França ( R4 Pq Inf) , um residente de psiquiatria tinha sob seus cuidados hospitalares ( internados ) dois, três, no máximo quatro pacientes. A média que se vê no Brasil é de 25 pacientes por cada residente...
3. Retirando-se a Africa, o Brasil é o único país onde se ouve : “nossa , atendi hoje, em 12 horas de plantão, 85 pacientes”.
4. As sessões clínicas ( discussões de caso ) que eu via na França duravam até 8 horas... sim, um dia todo !. No Brasil, passou de 20 minutos, o pessoal começa a “cansar”.
5. Na França, pelos idos de 1988/89 (especifico isso porque pode ter mudado ), a dialética, a discussão, a oposição, eram a tônica de um serviço médico. No Brasil, se você “ousa” discordar de um colega, ele te julga como “inimigo”, ou no mínimo um “chato”.
6. No Brasil, rarissimamente, ( acho que , na verdade, nunca vi isso ), um médico que fez um diagnóstico, propõe um tratamento, muda de opinião, mesmo que lhe mostrem que esteja errado, que está prejudicando o paciente, mesmo que o paciente morra. Nunca ouvi a frase : “é, colega, acho que você está certo, sabe mais que eu, tem mais experiência que eu, vou mudar meu diagnóstico e tratamento”. Há um orgulho médico indestrutível , entre nós.
7. Dirijo um serviço hospitalar com residentes médicos. Um dos nossos residentes, que obrigatoriamente fazem psicoterapia com os pacientes, com as famílias, conversam sobre os problemas, a doença, etc, consegue atender , no máximo, 3 pacientes internados. Se fosse apenas para “tacar remédio no paciente”, “dopar o paciente”, um residente desses, então, poderia, de fato, atender até 25 pacientes...
8. O Brasil é o único país do mundo onde os casos mais complexos, graves, difíceis ( casos hospitalares/casos de emergência médica ) estão nas mãos dos profissionais menos capacitados ( geralmente recém-formados, geralmente quem não passou em residências médicas, geralmente os que “não conseguiram outra coisa”, etc), menos numerosos, com menos recursos.
9. É o único país do mundo onde uma família paga 900 reais em uma consulta com um “grande especialista”, mas , na hora de hospitalizar seu ente querido, acha “certo” pagar ( ou o convênio pagar ) um honorário médico de 50 reais para que um médico olhe seu parente grave em 24 horas, e em meio a uns 25 outros pacientes, pois com esse preço de honorários médicos, o hospital não consegue pagar mais médicos... ( estou falando da maioria dos hospitais pequenos/médicos Brasil afora, não nos padrão Einstein/Sírio, etc) .
10. Talvez seja o único país do mundo ( excetuando-se Cuba) onde o médico forma-se com um modelo de “saúde pública”, “saúde coletiva”, voltado para um péssimo atendimento, o SUS. Sim, TODO programa de ensino médico ( graças às políticas esquerdistas do MEC) é voltado para formar o “médico de pés-descalços”, aquele que, no máximo, vai passar vermífugo na periferia e dar palestras de “hipertensão” no postinho de saúde ou de “drogas e sexo na adolescência na escola pública do bairro”.
11. Este médico, “formado para ser médico do SUS na periferia”, é também formado para pensar e trabalhar como um médico de periferia, sem hospital, sem “aparelhos”, sem “grandes complexidades”, sem “doenças raras”. É pensado para ser como aquele garoto atendente de balcão de farmácia : “para febre, um antitérmico”, “para dor, um analgésico”, “para cólica um antiespasmódico”, para “depressão um antidepressivo”, para “psicose um antipsicótico”, e assim por diante.
12. Ou seja, é formado na superficialidade, na “rapidez” ( uma consulta a cada 3 minutos, a média do SUS ), na base de “sintomas e tratamento”. A medicina científica é uma coisa totalmente diferente. Sintoma é só o início de uma longuíssima cadeia de raciocínio, cuja parte principal, inclusive, é uma coisa chamada “fisiopatologia”( algo complicado que não vou explicar aqui ), coisa que muitíssimos poucos médicos brasileiros sabem pensar... O raciocínio é sempre em cima do “sintoma e tratamento”, não em cima de como um sintoma se relaciona com outro, como um sintoma se liga a esta ou aquela alteração biológica, como uma lesão ou disfunção liga-se a outros sistemas orgânicos, etc.
13. Esse tipo de raciocínio exige tempo, profundidade, estudo complexo, coisas que os estudantes e residentes no Brasil não são treinados. Isso acontece por vários motivos : modelo de “saúde pública”, faculdades gananciosas que tem alunos demais, não dão prática, residentes que só tocam serviço, não tem tempo para estudar, debruçar-se sobre cada caso, estudantes/residentes sem professores suficientes, capacitados ( p.ex., aprox. 60% dos professores dos cursos de medicina não são médicos !!).
14. Todos os fatores acima impactam enormemente no tema principal desse artigo : a necessidade de mais e mais médicos. Isso acontece por dois motivos básicos : como são mal-formados, a resolutividade é péssima, então, para resolver um único problema – que exigiria um único médico – são necessários 10... E o outro problema é que, com estes médicos superficiais, que dão pouca atenção ao paciente, que pensam pouco sobre o paciente, debruçam-se pouco sobre cada caso, acontece que onde um único médico cuida de 25 pacientes, seria, na verdade, necessário que houvesse 6 médicos !!
15. Em psiquiatria, em hospitais, que é onde exerço minha atividade, vejo muito isso, a toda hora, como já especifiquei acima. Fico sabendo , por exemplo, de um médico residente atendendo 25, 30, pacientes, e, é claro, atendendo mal, só “tacando remédio”, “dopando”, “colocando para dormir”, quando, na verdade, deveriam haver 6 ou 7 médicos para este tanto de pacientes, de modo a fazer psicoterapia, atenção familiar, estudar o caso, pedir exames adequados, acompanhar e estudar os exames, etc, etc.
16. As distorções apontadas acima estão tão enraizadas na mente do médico e na cultura brasileira que ninguém se dá conta delas. Todo mundo acha que é “assim mesmo”, que o “normal mesmo é ver um médico esbaforido, correndo , grosso, frio, estressado, rejeitante, “sem tempo para ouvir isso”, “sem tempo para ler isso tudo”, “sem tempo para conversar tanto sobre isso”. O Brasil acostumou com o “padrão SUS do médico”. E este padrão se repete em todos os níveis, não só nos convênios médicos mas até nos níveis particulares. É a “fôrma” dentro da qual o médico se formou. Mesmo para os médicos que a gente paga particular, quase sempre o padrão é esse mesmo, “pressa”, grosseria, impaciência, sarcasmos ( “você quer saber mais que eu”? “você quer me ensinar”? ), orgulhos, condutas intempestivas e superficiais, “pouco raciocinadas”. O SUS moldou a “mente médica brasileira”, todos acham : “é assim mesmo”. É tudo na base da “correria”, na base “daquele tanto de gente”, na base do “hospitais lotados”, “hospitais no limite”, sem-condições, “mal-atendido”, etc. O Governo implantou o padrão-SUS de ser na Saúde.
17. Mesmo que esses médicos acima descritos fossem bem-formados, com alta resolutividade, mesmo assim seriam necessários mais médicos do que os que há no Brasil. Faça um teste simples : quantos médicos você conhece que não “estejam corridos” ? “apressados” ? “estressados”? “não tenham tempo para conversar o necessário”? “não te escutem o necessário”? “não vejam e estudem todos os seus exames e todos os seus relatórios médicos”? Nas minhas contas, seriam uns 10% dos médicos que se enquadram nisso, e olhe lá... Portanto, se 90% está apressado, é porque o atendimento está falho em algum lugar, de algum modo. E isso indica que há necessidade de mais médicos.
18. É claro que os médicos, com razão, irão chiar com esta minha tese : “mas a gente corre porque ganha pouco”. Sim, é correto, para muitos ( não para todos, pois há aqueles que , por ganância, mesmo ganhando bem, irão correr muito também).
19. A solução para isso seria desmontar toda essa máquina pérfida que o Governo ( associado a Grandes Empresas /Grupos Médicos-Hospitalares-Convênios ) montaram contra o médico brasileiro, a começar da mais completa desvalorização do principal Ato Médico, o ato onde todo o “raciocínio fino” é feito, a famigerada “consultinha” ( até o termo é pejorativo , além de extremamente mal-remunerado). Mas, mesmo se os honorários médicos fossem bem pagos, o que aconteceria ? Os médicos teriam de se dedicar mais e mais profundamente a cada paciente, e aí sobrariam muitos outros pacientes necessitando de atendimento. Daí a necessidade de mais médicos e mais especialistas, como que queria demonstrar desde o começo.
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Marcelo Caixeta, médico psiquiatra. (hospitalasmigo@gmail.com)

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