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domingo, setembro 24, 2017

Favela. Antonio Rizerio.

Nego-me a arquivar a bela palavra brasileira “favela”, substituindo-a pelo vocábulo “comunidade” (totalmente inadequado para descrever a Rocinha, por exemplo, com suas nítidas distinções econômicas internas e seus claros conflitos de interesses), em nome de frescuras infundadas do “politicamente correto”.
Favela é palavra que remete ao mundo vegetal sertanejo e à Guerra de Canudos; palavra que tem a sua própria densidade histórica e cultural, além de por cerca de um século vir frequentando com brilho criações textuais que se articulam e se movem na dimensão estética da linguagem, entre a poesia, a poemúsica e a prosa de ficção.
“Comunidade”, do latim communitas, não tem um referencial histórico, geográfico ou urbanístico delimitado com um mínimo de clareza. E, no plano semântico, designa (ou remete a ideias de) comunhão, fraternidade, grupos monásticos que cultivam hábitos e pensamentos comuns, pessoas ligadas pelos mesmos interesses materiais ou abstratos, conjunto de indivíduos vinculados por uma crença comum, irmandade, congregação, harmonia (parece que começou a ser aplicada às favelas por padres católicos, acentuando-se no âmbito da “teologia da libertação”, com suas “comunidades eclesiais de base”).
E é claro que nada disso serve para definir uma favela real, com pessoas de carne e osso, portadoras de idéias, posses e interesses díspares. De outra parte, nunca vi sentido em se tratar como “comunidade” um certo aglomerado populacional ou os moradores de determinada área ou região.
Por fim, há um segmento do espectro referencial da palavra que menos ainda se aplica a uma favela: o de conjunto de indivíduos que partilham uma característica comum, inserindo-se como grupo distinto e específico na sociedade envolvente, que, por sua vez, considera-o algo exótico, reduto à parte do mundo de todos, com práticas apenas suas, a exemplo das antigas comunidades hippies das décadas de 1960-1970.
Enfim, quem usa a palavra “comunidade”, recusando o sintagma “favela”, me parece adotar uma postura essencialmente manipuladora, seja visando a ativar a autoestima grupal, seja para driblar ou tentar ocultar aspectos incômodos da realidade. Mas minha viagem é outra. Falo favela, portanto.

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