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quinta-feira, janeiro 10, 2019

HORA ABSURDA. Fernando Pessoa. Poesia.

HORA ABSURDA
Fernando Pessoa

O teu silêncio é uma nau com todas as velas
[ pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu
[ sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e
[ as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de
[ qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se
[ parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido,
[ a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar
[ traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a
[ minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a
[ idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio
[ os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré
[ cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana
[ de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá fora... É em
[ mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela
[ escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que
[ nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única
[ estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca
[ chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter
[ sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as
[ naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga
[ sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe
[ negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore
[ que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me
[ alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa
[ nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos
[ caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem
[ chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das
[ barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços
[ daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as
[ naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de
[ vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os
[ nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para
[ si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque
[ o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o
[ olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele
[ lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
[ mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas,
[ muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais
[ haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias,
[ brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se
[ nuas ao luar.
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham
[ partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de
[ naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo
[ fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos
[ jardins de outrora
As próprias sombras estão mais tristes...
[ Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão,
[ e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que
[ eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha
[ alma...
As relvas de todos os prados foram frescas
[ sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares
[ calma,
E eu ver isso em ti e um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...
[ Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...
[ Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com
[ pedras raras...
Minha alma é una lâmpada que se apagou e
[ ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao
[ sol!
Todas as princesas sentiram o seio
[ oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas
[ no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões
[ nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale...
[ Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na
[ aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que
[ está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que
[ penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...
[ Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como
[ medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor
[ de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não
[ perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é
[ um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria
[ tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora
[ não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos
[ os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia
[ no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios
[ eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio
[ mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar
[ sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de
[ virgens que tecem..
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher
[ que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o
[ tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as
[ pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas
[ as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, com um ruído
[ brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens
[ que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
[ mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
[ nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
[ auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica
[ desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande
[ sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é
[ uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a
[ meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo
[ vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma
[ bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta
[ pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro
[ este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face
[ calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios
[ medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a
[ sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além
[ dos sonhos...

[4-7-1913]


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