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domingo, agosto 27, 2017

Crime psiquiátrico. Marcelo Ferreira Caixeta

Perguntas psiquiátricas que me foram feitas pela imprensa sobre o caso do garoto de 13 anos que matou a menina de 14 “porque não gostava do jeito dela andar”.
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1/ Pergunta : “você acha que foi um crime psiquiátrico ? Por quê ?”
Resposta : todo crime que não pode ser compreendido psicologicamente pela maioria das pessoas tem um forte indício de ser um crime psiquiátrico. Por exemplo : é compreensível psicologicamente que uma pessoa mate outra porque “não gosta do modo como ela anda” ? É compreensível que ele a mate e, ainda com a faca nas mãos e roupa suja de sangue , vá até a sua escola e comunique o fato aos diretores ? É compreensível um garoto que, com 13 anos, já tenha uma “lista de mais dois colegas para morrer” ? Isso tudo afora o fato de ser um jovem muito isolado, poucos amigos, e, segundo a mídia, facilmente irritável, explosivo. Tudo isso pode ser o indício de uma psicopatologia psiquiátrica em curso.
2/ Que tipo de psicopatologia você acha que poderia estar acontecendo nesse caso ?
Resposta : só posso falar de modo geral, em tese geral, pois não examinei o paciente como médico psiquiatra. Mas a clínica diária psiquiátrica de adolescentes é muito cheia de casos como esse : os pacientes , nessa fase da vida, podem ter o que um psiquiatra alemão – Kretschmer - denominou de “síndrome do delírio sensitivo paranoide de referência” ( chamado, portanto, de “delírio de Gaupp-Kretschmer” ; Gaupp foi outro psiquiatra, professor de Kretschmer, que descreveu um quadro semelhante em um professor escolar) . O que é isso ? É um tipo de delírio, geralmente associado com sintomas depressivos, no qual o paciente sente que tudo que os outros fazem está referenciado a ele. Sente que se uma pessoa levanta a mão de um jeito, está referenciado a ele, se uma pessoa faz um gracejo, uma observação, um movimento inusitado, tudo isso está referenciado a ele. Ele fica desconfiado, arredio, e, quando há depressão associada, isso pode desembocar em agressividade. No delírio há uma limitação do lobo frontal, que é uma região do cérebro que nos inibe em determinados comportamentos. Quando esta região está falha – e no delírio sempre está – a pessoa pode desinibir-se, vir a praticar crimes que não praticaria em estado normal. Algumas pessoas, hoje chamadas de “psicopatas” por alguns psiquiatras, já podem nascer com um déficit cerebral nessa região, tornando-se assim “frios por natureza”, personalidades esquizóides.
Tais personalidades, quando delirantes , depressivas, psicóticas, podem vir a atuar “friamente” seus delírios criminais.
3/ Poderíamos então dizer que esse garoto tem características de “psicopata” ?
Resposta : hoje em dia o termo “psicopata”, em psiquiatria criminal-forense, remete à duas situações bem distintas ( e isso causa confusão na mídia ): em primeiro lugar, refere-se à pessoas que têm uma disfunção cerebral que leva à frieza, como eu disse acima. Em segundo lugar, o termo “psicopata” pode referir-se ao que hoje se chama, nas modernas classificações psiquiátricas, de “transtorno de personalidade antissocial”.
Não acho que o caso do garoto acima tenha características de “personalidade antissocial” ( por convenção, abaixo dos 18 anos fala-se em “distúrbio de conduta” pois a personalidade ainda não está completamente formada ) , pois tais pessoas têm um histórico bem rico de vários, variadíssimos, tipo de atividades delitivas, e esse garoto parece não ter isso : fugas, tráfico, crimes, múltiplas agressões, completa instabilidade psicomotora, familiar, escolar, geográfica, laboral, afetiva-conjugal, precocidade e hiperatividade sexual, vários tipos de atividades delitivas, vida errante, desenraizada, falta de apego a locais, pessoas, instituições, projetos de vida. Ao que me parece , o garoto não tem nada disso.
Por outro lado, o “psicopata frio” , que é outro tipo de psicopatia que eu falei, esse geralmente não tem delírios, é muito calculista, tem obsessões longas, fixas, sobre os crimes e sobre as fantasias criminais, os planeja, os esconde muito bem, com muita inteligência, tem um passado de frieza emocional geralmente bem explícita ( inclusive com animais, crianças ) e é uma condição bem crônica, não aguda. Como é uma condição psiquiátrica que exige também que o paciente tenha bastante “lógica” ( eles são inteligentes e calculistas, como eu disse ), geralmente isso não aparece na puberdade, onde a lógica do pensamento e do comportamento ainda não se instalou definitivamente, ainda há imaturidade sináptica ( conexões do cérebro ).
4/ Há tratamento para casos como esse ?
Resposta : exige uma expertise bem grande por parte do médico psiquiatra, por exemplo, tem de ser um médico com formação prática/teórica em psiquiatria do adolescente, psiquiatria forense e psicoterapia. Há necessidade de hospitalização psiquiátrica ( inclusive para mais exames diagnósticos e observação psicopatológica ) até o tratamento razoável da condição mental, ou seja, uma cessação razoável da periculosidade para terceiros. Mesmo após a hospitalização, é caso para ser seguido ambulatorialmente – em consultório – por no mínimo duas consultas por semana, pelo profissional gabaritado acima. Afora isso, o risco para terceiros, e mesmo para o paciente , é muito alto.
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Marcelo Caixeta,[hospitalasmigo@gmail.com] médico psiquiatra, especialista em psiquiatria da infância e adolescência pela Universidade de Paris XI, pós-graduado em psiquiatria infantil pela USP, psiquiatra criminal ( forense ) pela AMB/ABPsiq

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