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sexta-feira, agosto 31, 2012

Roda Viva - Chico Buarque

Acerca da Natureza. Parmênides.

POEMA DE PARMÊNIDES (I-VIII)


ACERCA DA NATUREZA

I

Éguas que me levam, a quanto lhes alcança o ímpeto, caval-
gavam, quando numes levaram-me a adentrar uma via loquaz,
que leva por toda cidade quem sabe à luz; por ela
era levado; pois por ela, mui hábeis éguas me levavam
puxando o carro, mas eram moças que dirigiam o caminho.

O eixo, porém, nos meões, impelia um toque de flauta
incandescendo (pois, de ambos os lados, duas rodas
giravam comprimindo-os) porquanto as filhas do sol
fustigassem a prosseguir e abandonar os domínios da Noite,
para a luz, arrancando da cabeça, com as mãos, os véus.

Lá ficam as portas dos caminhos da Noite e do Dia,
pórtico e umbral de pedra as mantém de ambos os lados,
mas, em grandiosos batentes, moldam-se elas, etéreas,
cujas chaves alternantes quem possui é Justiça rigorosa.

As moças, seduzindo com suaves palavras, persuadiram-na,
atenciosamente, a que lhes retirasse rapidamente
o ferrolho trancado das portas; estas, então, fizeram com que
o imenso vão dos batentes se escancarasse girando
os eixos de bronze alternadamente nos cilindros encaixados
com cavilhas e ferrolhos; as moças, então, pela via aberta
através das portas, mantém o carro e os cavalos em frente.

E a deusa, com boa vontade, acolheu-me, e em sua mão
minha mão direita tomou, desta maneira proferiu a palavra e me saudou:
Ó jovem acompanhado por aurigas imortais,
que, com cavalos, te levam ao alcance de nossa morada,
Salve! Porque nenhuma Partida ruim te enviou a trilhar este
caminho, à medida que é um caminho apartado dos homens,
mas sim Norma e Justiça. Mas é preciso que de tudo te
instruas: tanto do intrépido coração da Verdade persuasiva
quanto das opiniões de mortais em que não há fé verdadeira.
Contudo, também isto aprenderás: como as opiniões
precisavam manifestamente ser, elas que atravessam tudo através de tudo.




II

Pois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção ouvindo a palavra
acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar:
uma, para o que é e, como tal, não é para não ser,
é o caminho de Persuasão — pois segue pela Verdade —,
outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser,
esta via afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável;
pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não é
realizável, nem tampouco se o diria:

III

...pois o mesmo é a pensar e também ser.

IV

Vê como o ausente é, no entanto, presente firmemente em pensamento;
pois este não apartará o próprio ente do manter-se ente
nem se dispersando de toda forma todo pelo
mundo, nem se concentrando.

V

O Encontro, porém, é para mim,
de onde começarei; pois lá mesmo chegarei ainda outra vez.


VI

Precisa que o dizer o pensar o que é seja; pois há ser,
Mas nada não há; isto eu te exorto a indicar.

Pois [ ____ ] por esta primeira via de investigação,
Em seguida por aquela em que mortais que nada sabem
forjam, bicéfalos; pois despreparo guia em frente
em seus peitos um espírito errante; eles são levados,
tão surdos como cegos, estupefatos, hordas indecisas,
para os quais o existir e não ser valem o mesmo
e não o mesmo, de todos o caminho é de ida e volta.

VII

Pois isto não, nunca hás de domar não entes a serem;
Mas o que pensas, separa desta via de investigação;
Nem o hábito multitudinário ao longo desta via te force
A vagar o olhar sem escopo, e ressoar ouvido
E língua, mas discerne pela palavra a litigiosa contenda
Por mim proferida.


VIII

Ainda uma só palavra resta do caminho:
Que é; sobre este há bem muitos sinais:
Que sendo ingênito também é imperecível.
Solitário, íntegro como intrépido e sem meta;
Nem nunca era nem será, pois é todo junto agora,
Uno, continuo; pois que origem sua buscarias?
Por onde, de onde se distenderia? Não permitirei que tu
Digas nem penses que do não ente: pois não é dizível nem
pensável que seja enquanto não é. E que necessidade o teria
impelido, depois ou antes, a desabrochar começando do nada?
Assim, ou é necessário existir totalmente ou de modo algum.
Tampouco do ente, nunca força de fé permitirá
surgir algo para além do mesmo; por isso Justiça nem
deixa vir a ser nem sucumbir, afrouxando amarras,
mas mantém; a decisão sobre tais está nisto:
é ou não é. Mas já está decidido, por necessidade,
qual deixar como impensável e inominado – pois é um
caminho não verdadeiro – e qual há de ser, por existir e ser verídico.
Como existiria depois, o que é? Como teria surgido?
Pois se surgiu, não é, nem se há de ser algum dia.
Assim origem se apaga como o insondável ocaso.
Nem é divisível, pois é todo equivalente:
Nem algo maior lá que o impeça de ser contínuo,
Nem algo menor, mas é todo pleno do que é.
Por isso é todo contínuo: pois ente a ente acerca
Além disso, imóvel, nos limites de grandes amarras
Fica sem partida, sem parada, já que origem e ocaso
Muito longe se extraviaram, rechaçou-os fé verdadeira.
O mesmo no mesmo ficando, sobre si mesmo pousando
E assim, aí fica firme, pois poderosa Necessidade
Mantém nas amarras do limite, cercando-o por todos os lados,
Porque é norma o ente não ser inacabado.
Pois é não carente, não sendo, careceria de tudo.
O mesmo é o que é a pensar e o pensamento de que é.
Pois sem o ente, no qual está apalavrado,
não encontrarás o pensar. Pois nenhum outro nem é
nem será além do ente, pois que Partida já o prendeu
para ser todo imóvel; assim será nome, tudo
quanto os mortais instituíram persuadidos de ser verdadeiro,
surgir e também sucumbir, ser e também não,
e alterar de lugar e variar pela superfície aparente

Parmênides

Os noivos. Nelson Rodrigues

Os noivos
Nelson Rodrigues


Quando Salviano começou a namorar Edila, o pai o chamou:

— Senta, meu filho, senta. Vamos bater um papo.

Ele obedeceu:

— Pronto, papai.

O velho levantou-se. Andou de um lado para outro e senta de novo:

— Quero saber, de ti, o seguinte: esse teu namoro é coisa séria? Pra casar?

Vermelho, respondeu:

— Minhas intenções são boas.

O outro esfrega as mãos.

— Ótimo! Edila é uma moça direita, moça de família. E o que eu não quero para minha filha, não desejo para a filha dos outros. Agora, meu filho, vou te dar um conselho.

Salviano espera. Apesar de adulto, de homem-feito, considerava o pai uma espécie de Bíblia. O velho, que estava sentado, ergue-se; põe a mão no ombro do filho:

— O grande golpe de um namorado, sabe qual é? No duro? — E baixa a voz: — É não tocar na pequena, não tomar certas liberdades, percebeu?
Assombro de Salviano: "Mas, como? Liberdades, como?".

E o pai:

— Por exemplo: o beijo! Se você beija sua namorada a torto e a direito, o que é que acontece? Você enjoa, meu filho. Batata: enjoa! E quando chega o casamento, nem a mulher oferece novidades para o homem, nem o homem para a mulher. A lua-de-mel vai-se por água abaixo. Compreende?

Abismado de tanta sabedoria, admitiu:

— Compreendi.


A SOMBRA PATERNA


Na tarde seguinte, quando se encontrou com a menina, tratou de resumir a conversa da véspera. Terminou, com um verdadeiro grito de alma:

— Muito bacana, o meu pai! Tu não achas?

Edila, também numa impressão profunda, conveio: "Acho”.

— Concordas?

Foi positiva:

— Concordo.

Pouco antes de se despedir, Salviano batia no peito:

— Dizem que ninguém é infalível. Pois eu vou te dizer negócio: meu pai é infalível, percebeu? Infalível, no duro


O BEIJO


Nesse dia, coincidiu que a mãe de Edila também a doutrinasse sobre as possibilidades ameaçadoras de qualquer namoro. E insistiu, com muito empenho, sobre um ponto que considerava importantíssimo:

— Cuidado com o beijo na boca! O perigo é o beijo na boca!

A garota, espantada,protestou

— Ora, mamãe!

E a velha:

— Ora o quê? É isso mesmo! Sem beijo não há nada, está ,.tudo muito bem. OK. E com beijo pode acontecer o diabo. Você é muito menina e talvez não perceba certas coisas. Mas pode ficar certa: tudo que acontece de ruim, entre um homem e uma mulher, começa num beijo!


O IDÍLIO


Foi um namoro tranqüilo, macio, sem impaciências, arrebatamentos. Sob a inspiração paterna, ele planificou o romance, de alto a baixo, sem descurar de nenhum detalhe. Antes de mais nada, houve o seguinte acordo:

— Eu não toco em ti até o dia do casamento.

Edila pergunta:

— E nem me beija?

Enfiou as duas mãos nos bolsos:

— Nem te beijo. OK?

Encarou-o, serena:

— OK.

Dir-se-ia que este assentimento o surpreendeu. Insinua:

— Ou será que você vai sentir falta?

— De quê?

E Salviano, lambendo os beiços:

— Digo falta de beijos e, enfim, de carinho.

Sorriu, segura de si:

— Não. Estou cem por cento com teu pai. Acho que teu pai está com a razão.

Salviano não sabe o que dizer. Edila continua, com o seu jeito tranqüilo:

— Sabe que essas coisas não me interessam muito? Eu acho que não sou como as outras. Sou diferente. Vejo minhas amigas dizerem que beijo é isso, aquilo e aquilo outro. Fico boba! E te digo mais: eu tenho, até, uma certa repugnância. Olha como eu estou arrepiada, olha, só de falar nesse assunto!


O VELHO


Desde menino, Salviano se habituara a prestar contas quase diárias ao pai, de suas idéias, sentimentos e atos. O velho, que se chamava Notário, ouvia e dava os conselhos que cada caso comportava. Durante todo o namoro com Edila, seu Notário esteve, sempre, a par das reações do filho e da futura nora. Salviano, ao terminar as confidências, queria saber: "Que tal, papai?". Seu Notário apanhava um cigarro, acendia-o e dava seu parecer, com uma clarividência que intimidava o rapaz:

— Já vi que essa menina tem o temperamento de uma esposa cem por cento. A esposa deve ser, mal comparando, e sob certos aspectos, um paralelepípedo. Essas mulheres que dão muita importância à matéria não devem casar. A esposa, quanto mais fria, mais acomodada, melhor!

Salviano retransmitia, tanto quanto possível, para a namorada, as reflexões paternas. Edila suspirava: "Teu pai é uma simpatia!". De vez em quando, o rapaz queria esquecer as lições que recebia em casa. Com uma salivação intensa, o olhar rutilante, tentava enlaçar a pequena. Edila, porém, era irredutível; imobilizava-o:

— Quieto!

Ele recuava:

— Tens razão!


CATÁSTROFE


Um dia, porém, o dr. Borborema, que era médico de Edila e família, vai procurar Salviano no emprego. Conversam no corredor. O velhinho foi sumário: "Sua noiva acaba de sair do meu consultório. Para encurtar conversa: ela vai ser mãe!". Salviano recua, sem entender:

— Mãe?!...

E o outro, balançando a cabeça: "Por que é que vocês não esperaram, carambolas? Custava esperar?". Salviano travou-lhe o braço, rilhava os dentes: "De quantos meses?". Resposta: "Três". Dr. Borborema já se despedia: "O negócio, agora, já sabe: é apressar o casamento. Casar antes que dê na vista". Petrificado, deixou o médico ir. No corredor do emprego, apertava a cabeça entre as mãos: "Não é possível! Não pode ser!". Meia hora depois, desembarcava e invadia, alucinado, a casa do pai. Arremessou-se nos braços de seu Notário, aos soluços.

— Edila está nessas e nessas condições, meu pai! — E, num soluço mais,fundo, completa: — E não fui eu! Juro que não fui eu!


MISERICÓRDIA


Foi uma conversa que se alongou por toda uma noite. No seu desespero inicial, ele berrava: "Cínica! Cínica!". E soluçava: "Nunca teve um beijo meu, que sou seu noivo, e vai ter o filho do outro!". O pai, porém, conseguiu, após poucos, aplacá-lo. Sustentou a tese de que todos nós, afinal de contas, somos falíveis e, particularmente, as mulheres: "Elas são de vidro", afirmava. Alta madrugada, o pobre-diabo pergunta: "E eu? Devo fazer o quê?". Justiça se lhe faça - o velho foi magnífico: "Perdoar. Perdoa, meu filho, perdoa!". Quis protestar: "Ela merece um tiro!". Mais que depressa, seu Notário atalha:
— Ela, não, nunca! Ele, sim! Ele merece!

— Quem?

Baixa a voz: "O pai da criança! Esse filho não caiu do céu, de pára-quedas! Há um culpado". Pausa. Os dois se entreolham. Seu Notário segura o filho pelos dois braços:

— Antes de ti, Edila teve um namorado. Deve ter sido ele. Se fosse comigo, eu matava o cara que...

Ergue-se, transfigurado, quase eufórico: "Tem razão, meu pai! O senhor sempre tem razão!".


O INOCENTE


Pôde, assim; desviar da noiva o seu ódio De manhã, passou pela casa de Edila. Com apavorante serenidade, em voz baixa, pediu o nome do culpado. Diante dele, a garota torcia e destorcia as mãos: "Não digo! Tudo, menos isso!". Ele sugeria, desesperado: "Foi o Pimenta?". O Pimenta era o antigo namorado de Edila. Ela dizia: "Não sei, não sei!". Salviano saiu dali certo. Procurou o outro, que conhecia de nome e de vista. Antes que o Pimenta pudesse esboçar um gesto, matou-o, com três tiros, à queima-roupa. E fez mais. Vendo um homem, um semelhante, agonizar aos seus pés, com um olhar de espanto intolerável, ele virou a arma contra si mesmo e estourou os miolos. Mais tarde, desembaraçado o corpo, foi instalada a câmara-ardente na casa paterna. Alta madrugada, havia, na sala, três ou quatro pessoas, além da noiva e de seu Notário. Em dado momento, o velho bate no ombro de Edila e a chama para o corredor. E, lá, ele, sem uma palavra, aperta entre as mãos o rosto da pequena e a beija na boca, com loucura, gana. Quando se desprendem, seu Notário, respirando forte, baixa a voz:

— Foi melhor assim. Ninguém desconfia. Ótimo.

Voltaram para a sala e continuaram o velório.

História da Arte 11 - Expressionismo

206. Ao revelar o seu nome misterioso de YHWH, «Eu sou Aquele que É», ou «Eu sou Aquele que Sou», ou ainda «Eu sou quem Eu sou», Deus diz Quem é e com que nome deve ser chamado. Este nome divino é misterioso, tal como Deus é mistério. E, ao mesmo tempo, um nome revelado e como que a recusa dum nome. É assim que Deus exprime melhor o que Ele é, infinitamente acima de tudo o que podemos compreender ou dizer: Ele é o «Deus escondido» (Is 45, 15), o seu nome é inefável (7), e é o Deus que Se faz próximo dos homens.

207. Ao revelar o seu nome, Deus revela ao mesmo tempo a sua fidelidade, que é de sempre e para sempre, válida tanto para o passado («Eu sou o Deus de teu pai» – Ex 3, 6), como para o futuro («Eu estarei contigo» – Ex 3, 12). Deus, que revela o seu nome como sendo «Eu sou», revela-Se como o Deus que está sempre presente junto do seu povo para o salvar.
Catecismo

A charge de Chico Caruso

Ao espelho

AO ESPELHO
Charles Fonseca

Quando a amada foi embora
A outra me olhou à espreita
Disse-me o que te estreita
O peito então nesta hora?

É a saudade que fica
No meu peito a toda hora
Quero que vá sendo agora
Quero que fique e me agita

Este amar que é a mim mesmo
Que é o desejo de outra
Vez abraçar a garota,
O meu renovo, oh espelho!

Falta mais gente

Frase do dia

Esse negócio do julgamento no Judiciário não pega no eleitorado, não. O povo gosta de assistir é processo de cassação, quando o cara é chamado de ladrão na tribuna.
Senador Wellington Dias (PT), candidato à prefeitura de Teresina (PI)

quinta-feira, agosto 30, 2012

Chico Buarque. A banda. 1966

Bach. Música sacra cristã.

Que mais hei?

QUE MAIS HEI?
Charles Fonseca

Eu sei quem muito me deve
Pedir perdão eu bem mais
Deixo pra esse a paz
Deixe-me pás pra que enterre

A muita dor que causei
O mais amar só no além
Que importa quem foi mais quem
Quem mais será, que mais hei?

História da Arte 10 - Impressionismo

Frase do dia

Agentes públicos que se deixam corromper são corruptos. Profanadores da República. Deliquentes da ética do poder.
Celso de Melo, ministro do STF, durante julgamento do mensalão

A charge do Chico Caruso

Lembranças do São João

LEMBRANÇAS DO SÃO JOÃO
Charles Fonseca.

Nas noites do São João
No quarto da lua nova
Há uma estrela que chora
Pendências do coração

Da virgem desenganada
Do promotor da paixão
Do douto em desilusão
Da que foi na enxurrada

Do que bebia nas águas
Ardentes paixões vazias
Ninguém sabe em que bacias
Boiavam as suas mágoas

Nas noites luares vazios
O velho Chico contava
Mil contos e provocava
Risos soltavam assobios

Eram assim eles irmãos
De contas feito o balaio
Mil contas, adeus a Sampaio
A Zé, a Lelê, Chico então!

Dia de pai. 12 de agosto 2012


quarta-feira, agosto 29, 2012

A charge do Amarildo

Frase do dia

A água esfriou e a CPI saiu das capas dos jornais e, agora, o sr. Pagot vem falar, quando já os partidos já fizeram os acordos para não continuar a investigação.
Senador Pedro Simon (PMDB-RS) após depoimento de Luiz Antônio Pagot, ex-diretor-geral do DNIT, na CPI do Cachoeira

Bom de bico

http://www.wimp.com/harmonicacarnegie/

Livro de Ocorrências. Rubem Fonseca

Livro de Ocorrências
Rubem Fonseca


1.

Investigador Miro trouxe a mulher à minha presença.

Foi o marido, disse Miro, desinteressado. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga de marido e mulher.

Ela estava com dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço.

Foi o seu marido que fez isso?, perguntei.

Não foi por mal, doutor, eu não quero dar queixa.

Então por que a senhora veio aqui?

Na hora eu fiquei com raiva, mas já passou. Posso ir embora? Não.

Miro suspirou. Deixa a mulher ir embora, disse ele entre dentes.

A senhora sofreu lesões corporais, é um crime de ação pública, independe da sua queixa. Vou enviá-la a exame de corpo delito, eu disse.

Ubiratan é nervoso mas não é má pessoa, ela disse. Por favor, não faz nada com ele.

Eles moravam perto. Decidi ir falar com Ubiratan. Uma vez, em Madureira, eu havia convencido um sujeito a não bater mais na mulher; outros dois, quando trabalhei na Delegacia de Jacarepaguá, também haviam sido persuadidos a tratar a mulher com decência.

Um homem alto e musculoso abriu a porta. Estava de calção, sem camisa. Num canto da sala havia uma barra de aço com pesadas anilhas de ferro e dois halteres pintados de vermelho. Ele devia estar fazendo exercícios quando cheguei. Seus músculos estavam inchados e cobertos por grossa camada de suor. Ele exalava a força espiritual e o orgulho que uma boa saúde e um corpo cheio de músculos dão a certos homens.

Sou da Delegacia, eu disse.

Ah, então ela foi mesmo dar queixa, a idiota, Ubiratan resmungou. Abriu a geladeira, tirou uma lata de cerveja, destampou e começou a beber.

Vai e diz para ela voltar logo para casa senão vai ter.

Acho que você ainda não percebeu o que vim fazer aqui. Vim convidá-lo para depor na Delegacia.

Ubiratan atirou a lata vazia pela janela, pegou a barra de ato e levantou-a sobre a cabeça dez vezes, respirando ruidosamente pela boca, como se fosse uma locomotiva.

Você acha que eu tenho medo da polícia?, ele perguntou, olhando com admiração e carinho os músculos do peito e dos braços.

Não é preciso ter medo. Você vai lá apenas para depor. Ubiratan pegou meu braço e me sacudiu.

Cai fora, tira nojento, você está me irritando.

Tirei o revólver do coldre. Posso processá-lo por desacato, mas não vou fazer isso. Não complique as coisas, venha comigo à Delegacia, em meia hora estará livre, eu disse, calmamente e com delicadeza.

Ubiratan riu. Qual é tua altura, anãozinho?

Um metro e setenta. Vamos embora.

Vou tirar essa merda da sua mão e mijar no cano, anãozinho. Ubiratan contraiu todos os músculos do corpo, como um animal se arrepiando para assustar o outro, e estendeu o braço, a mão aberta para agarrar o meu revólver. Atirei na sua coxa. Ele me olhou atônito.

Olha o que você fez com o meu sartório!, Ubiratan gritou mostrando a própria coxa, você é maluco, o meu sartório!

Sinto muito, eu disse, agora vamos embora senão atiro na outra perna.

Pra onde você vai me levar, anãozinho?

Primeiro para o hospital, depois para a Delegacia.

Isso não vai ficar assim, anãozinho, tenho amigos influentes.

O sangue escorria pela sua perna, pingava no assoalho do carro. Desgraçado, o meu sartório! Sua voz era mais estridente do que a sirene que abria nosso caminho pelas ruas.

2.

Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino de dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.

Um guarda de trânsito prendeu em flagrante o motorista. Duas testemunhas afirmaram que o ônibus vinha em grande velocidade. O local do acidente foi isolado cuidadosamente.

Uma velha, mal vestida, com uma vela acesa na mão, queria atravessar o cordão de isolamento, "para salvar a alma do anjinho". Foi impedida. Com os outros espectadores, ela ficou contemplando o corpo de longe. Separado, no meio da rua, o cadáver parecia ainda menor.

Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?

Aos gritos uma mulher rompeu o cordão de isolamento e levantou o corpo do chão. Ordenei que ela o largasse. Torci seu braço, mas ela não parecia sentir dor, gemia alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto dos seus braços e colocá-lo no chão onde ele devia ficar, aguardando a perícia. Dois guardas arrastaram a mulher para longe.

Esses motoristas de ônibus são todos uns assassinos, disse o perito, ainda bem que o local está perfeito, da para fazer um laudo que nenhum rábula vai derrubar.

Fui até o carro da polícia e sentei no banco da frente, por alguns momentos. Meu paletó estava sujo de pequenos despojos do morto. Tentei limpar-me com as mãos. Chamei um dos guardas e mandei trazer o preso.

No caminho da delegacia olhei para ele. Era um homem magro, aparentando uns sessenta anos, e parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que não eram apenas daquele dia.

3.

Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele está no banheiro.

Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.

O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro. A casa cheirava a mofo, como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar vinha um odor de cebola e alho fritos.

A porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava lá.

Voltei para a sala. Já havia feito todas as perguntas a mulher quando o perito Azevedo chegou.

No banheiro, eu disse.

Anoitecia. Acendi a luz da sala. Azevedo me pediu ajuda. Fomos para o banheiro.

Levanta o corpo, disse o perito, para eu soltar o laço. Segurei o morto pela barriga. Da sua boca saiu um gemido.

Ar preso, disse Azevedo, esquisito não é? Rimos sem prazer. Pusemos o corpo no chão úmido. Um homem franzino, e barba por fazer, o rosto cinzento, parecia um boneco de cera.

Ele não deixou bilhete, nada, eu disse.

Eu conheço esse tipo, disse Azevedo, quando não agüentam mais eles se matam depressa, tem que ser depressa senão se arrependem.

Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as nas fraldas de sua camisa.

"Esperteza"

Rio das almas

RIO DAS ALMAS
Charles Fonseca

Manso o rio desliza em meandros
Sobre o leito profundo ao estuário
É o rio das almas pra sempre caudatário
Do sempre amar, destino ao oceano.

Já foi filete, riacho, cachoeira,
Encantou fontes, nelas chorou, fugiu
Por entre pedras, serpenteou, partiu
Manso o rio ao mar que abraça e beija.

Jean Antoine Houdon, Diana - c. 1776 Gulbenkian Foundation, Lisbon

A águia e a gralha. Esopo

A águia e a gralha

Uma Águia, saindo do seu ninho no alto de um penhasco, num fulminante voo rasante e certeiro, capturou uma ovelha e a levou presa às suas fortes e afiadas garras.
Uma Gralha, que a tudo testemunhara, tomada de inveja, decidiu que poderia fazer a mesma coisa.
Ela então voou para alto e tomou impulso. Então, com grande velocidade, atirou-se sobre uma Ovelha com a intenção de também carregá-la presa às suas garras.
Ocorre que suas garras, pequenas e fracas, acabaram por ficar embaraçadas no espesso manto de lã do animal, e isso a impediu inclusive de soltar-se, embora o tentasse com todas as suas forças.
O Pastor das ovelhas, vendo o que estava acontecendo, capturou-a. Feito isso, cortou suas penas, de modo que não pudesse mais voar.
À noite a levou para casa e entregou como brinquedo para seus filhos.
"Que pássaro engraçado é esse?", perguntou um deles.
"Ele é uma Gralha meus filhos. Mas se você lhe perguntar, ele dirá que é uma Águia."

Esopo




terça-feira, agosto 28, 2012

História da Arte 09 - Realismo

O Fim do Mundo. Cecília Meireles

O Fim do Mundo
Cecília Meireles


A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...
205. Do meio duma sarça que arde sem se consumir, Deus chama por Moisés. E diz-lhe: «Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob» (Ex 3, 6). Deus é o Deus dos antepassados, Aquele que tinha chamado e guiado os patriarcas nas suas peregrinações. É o Deus fiel e compassivo, que se lembra deles e das promessas que lhes fez. Ele vem para libertar da escravidão os seus descendentes. É o Deus que, para além do espaço e do tempo, pode e quer fazê-lo, e empenhará a Sua omnipotência na concretização deste desígnio.

«EU SOU AQUELE QUE SOU»

Moisés disse a Deus: «Vou então procurar os filhos de Israel e dizer-lhes: " O Deus de vossos pais enviou-me a vós". Mas se me perguntarem qual é o seu nome, que hei-de responder-lhes? Deus disse a Moisés: «Eu sou Aquele que sou». E prosseguiu: «Assim falarás aos filhos de Israel: Aquele que tem por nome "Eu sou" é que me enviou a vós [...] ... Será este o meu nome para sempre, nome que ficará de memória para todas as gerações» (Ex 3, 13-15).
Catecismo

Gal Costa. Vaca Profana

Amazing Child Prodigy in PIANO Grade5 (5Age) - Flood Time - Air 師承邱世傑

OREMOS
Charles Fonseca

Há fumos em pleno ar, alguém há
A crepitar nas chamas da agonia,
Um poeta no ar, salvem a poesia,
Salvem o vate, cheguem logo lá.

Cheguem mansinho, merece carinho
Pé ante pé que ele é dos nossos,
Ave musa, vem conter os colossos
De tantos versos, oremos baixinho.

A charge do Amarildo.

segunda-feira, agosto 27, 2012

A casa materna. Vinicius de Moraes

A casa materna
Vinicius de Moraes


Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.
É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.
A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.
Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna sabe por que, queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

História da Arte 08 - Romantismo

203. Deus revelou-Se ao seu povo Israel, dando-lhe a conhecer o seu nome. O nome exprime a essência, a identidade da pessoa e o sentido da sua vida. Deus tem um nome. Não é uma força anónima. Dizer o seu nome é dar-Se a conhecer aos outros; é, de certo modo, entregar-Se a Si próprio, tornando-Se acessível, capaz de ser conhecido mais intimamente e de ser invocado pessoalmente.

204. Deus revelou-Se progressivamente e sob diversos nomes ao seu povo; mas foi a revelação do nome divino feita a Moisés na teofania da sarça ardente, no limiar do êxodo e da Aliança do Sinai, que se impôs como sendo a revelação fundamental, tanto para a Antiga como para a Nova Aliança.
Catecismo

CORROSÃO. Charles Fonseca. Poesia

CORROSÃO
Charles Fonseca

Estão se indo meus melhores anos
De ti distante presente passado
Laço de fita futuro escavado
No fundo da alma já noutro plano

Da indiferença o melhor remédio
Pra dor passada a limpo foi sujo
O jugo, o joio, o jogo obtuso,
Antes distante que o amor tédio

De esperar de ti a gratidão
De me doar tanto a ti doendo
Correndo tu de mim me corroendo
Este amor refém de ti, na solidão.

Alfred Steiglitz

Provérbio do dia

"Se você vir seu inimigo com fome, pague um almoço pra ele; se ele estiver com sede, traga uma bebida. Sua bondade o deixará sem ação e o Eterno recompensará você."

Frase do dia

Eu não acredito que existiu um mensalão.
Lula, em entrevista ao jornal New York Times, sobre o escândalo durante seu governo

domingo, agosto 26, 2012

A águia e a flexa. Esopo

Voava uma águia nas alturas quando foi atingida por uma flecha e caiu ao chão, mortalmente ferida.
Em seus últimos momentos, a águia reparou que a flecha que a havia ferido trazia penas em uma das extremidades.
- Triste o nosso fim - lamentou a águia - que damos ao inimigo as armas para nossa própria destruição.

Esopo

Sobrinhos à sombra

Lei de Serpico, enunciada para a polícia de Nova York: “É o corrupto quem deve ter medo do honesto e não o honesto quem deve ter medo do ladrão”.

A charge de Chico Caruso

História da Arte 07 - Neoclássico

Frase do dia

Nós estamos no fio de navalha. Se não houver a condenação a Justiça brasileira vai ficar sob interrogação; se houver, o Brasil vai adiante, vai à frente.
Seador José Agripino Maia (RN), presidente do DEM

Quando o amor é demais. Freud

“A ocorrência de uma solicitude excessiva dessa espécie é muito comum nas neuroses e especialmente nas neuroses obsessivas, com as quais nossa comparação é principalmente traçada. Chegamos a compreender sua origem bastante claramente. Ela aparece onde quer que, além de um sentimento predominante de afeição, exista também uma corrente de hostilidade contrária, mas inconsciente – estado de coisas que representa um exemplo típico de uma atitude emocional ambivalente. A hostilidade é então feita calar no grito, por assim dizer, por uma intensificação excessiva da afeição, que se expressa em solicitude e se torna compulsiva, porque de outro modo seria inadequada para desempenhar a missão de manter sob repressão a corrente de sentimento contrária e inconsciente.” Freud.

Hiram Powers, 1846 - The Greek Slave

sábado, agosto 25, 2012

Pai coruja

PAI CORUJA
Charles Fonseca

A cortina em voil
Teu berço todo alvinho
O lençol todo arminho
Eu teu pai só bacurau

De noite te corujando
De dia eu tico-tico
Não sei se vou ou se fico
Ao teu lado só ninando

Será te verei já adulta
Tu já mãe e eu avô
Não, antes eu não me vou,
Oh Deus dá-me esta ventura!

segunda-feira, agosto 20, 2012

A bela ninfa do bosque sagrado. Vinicius de Moraes

A bela ninfa do bosque sagrado
Vinicius de Moraes

Hollywood, novembro de 1946: A noite é alta, Ciro's terminou e estamos todos - um destacado grupo de "estrelas" e "astros", entre os quais sou um modesto meteorito - na casa de Beverly Hills de Herman Hover, o notório dono da famosa boate de Sunset Boulevard. Vou nas águas de minha amiga Carmen Miranda, com quem saí e a quem, como um cavalheiro que sou, depositarei em sua vivenda de Bedford Street. Lá estão também as figuras ciclópicas de José do Patrocínio de Oliveira, o não menos conhecido Zé Carioca, e seu sonoplástico parceiro Nestor Amaral, ambos homens dos sete instrumentos, sendo que este é capaz de tocar o Hino Nacional batendo com um lápis nos dentes e o "Tico-tico no fubá" mediante pequenos cascudos acústicos aplicados no cocuruto - tudo diante de um microfone, bem entendido.
Carmen está quieta, sentada no braço de minha poltrona. Tornamo-nos rapidamente grandes amigos. Celebramo-nnos com o devido foguetório quando nos encontramos e uma vez juntos temos assunto para conversas intermináveis, sempre salpicadas de história sobre seus inícios como cantora, que me encantam. Sua verve é inesgotável e ninguém imita como ela antigas situações marotas em que se viram envolvidos, nos primeiros contatos com o público, seus velhos companheiros Mário Reis, Francisco Alves e Ari Barroso, na fase renascentista do samba carioca. Aprendi a querer-lhe muito bem e admirar a coragem com que enfrenta, ela uma mulher toda sensibilidade, a tortura de se ter tornado um grande cartaz comercial para Hollywood e de ter de sorrir à boçalidade, com raríssimas exceções, dos produtores, diretores, cenaristas, cinegrafistas, iluminadores e demais mão-de-obra dos estúdios. : Mas hoje Carmen está quieta. Seus imensos olhos verdes se horizontalizam numa linha de cansaço, quem sabe tédio, daquilo tudo já "tão tido, tão visto, tão conhecido", como diria Rimbaud. Cerca de nós, o ator Sonny Tuffs toca um piano mais bêbedo que o do genial Jimmy Yancey nas faixas em que foi gravado sem saber. Depois seu corpanzil oscila, ele se levanta só Deus sabe como e sai por ali cercando frango, não sem antes abraçar à passagem a atriz Ella Raines, que compareceu de noivo em punho e deixa-se estar com este a um canto, com um ar de Alicinha que só enganaria os drs. Sobral Pinto e Albert Schweitzer.
Numa poltrona a meu lado estira-se, com um viso suficientemente decomposto, o magnata Howart Hughes. Troco duas palavras com ele, mas o tedioso multimilionário e playboy, descobridor e bicho-papão de "estrelas", me parece muito mais interessado em Ella Raines - espécie de Grace Kelly de 1940, só que menos pasteurizada. Deixo-o, pois, à sua nova conquista, enquanto no meio da sala, Zé Carioca e Nestor Amaral "se viram" para chamar a atenção sobre os seus dotes de instrumentistas. Mas a pressão geral é grande e cada um procura cavar o pão da noite como pode, enquanto Herman Hover passeia com um ar de Napoleão em Marengo. Há propostas para um banho de piscina, para um concurso de rumba e outras trivialidades, mas ninguém topa mesmo porque o Sol (ou melhor "Ele", como dizem com o maior nojo meus amigos Américo e Zequinha Marques da Costa) já deve, contumaz ginasta matutino, estar pendurado à barra do horizonte para a sua atlética flexão de cada dia. O ambiente se está nitidamente desgastando em álcool e semostração.
Vou propor a Carmen irmos embora quando uma cortina se entreabre e surge uma mulher espetacular. Não creio que ninguém houvesse reparado, mas a mim ela me pareceu tão linda, tão linda que foi como se tudo tivesse de repente desaparecido diante dela.
Fiquei, confesso, totalmente obnubilado ante tanta beleza, muito embora essa beleza se movimentasse, por assim dizer, um pouco à base da dança a que chamam quadrilha: dois passinhos para diante e três para trás com direito a derrapagem. Mas o que o corpo fazia, o rosto desconhecia; pois esse rosto tinha mais majestade que Carlos Machado entrando no Sacha's. Ela olhou em torno com um soberano ar de desprezo e logo, dando com Carmen, tirou um ziguezague até ela, vindo postar-se no esplendor de todo o seu pé-direito justo diante de mim, coitadinho que nunca fiz mal a ninguém.
- Hey, Carmen - disse ela.
- Hey, honey - respondeu Carmen com o seu sorriso no 3.
- Gee, Carmen, I think you're wonderful, you know. I think you're tops, you know. Tops. You're terrific.
Para quem não sabe inglês, esse diálogo inteligente exprimia a admiração da moça por Carmen, a quem ela chamava de "do diabo", de "a máxima" e toda essa coisa. Passado o quê, dá ela de repente comigo lá embaixo, pobre de mim que tive bronquite em criança, e olhando-me por cima de suas pirâmides, fez-me a seguinte pergunta num tom de rainha para vassalo:
- Who are you? (- Quem é você?)
Declinei minha condição de modesto servidor da pátria no estrangeiro, o que não pareceu interessá-la um níquel. Em seguida, sem aviso prévio, ela debruçou-se a ponto de eu poder ver o algodãozinho que havia juntado no seu umbigo, pôs as mãos sobre os meus braços, trouxe o rosto até um centímetro do meu e cuspindo-me todo como devia fez-me a seguinte indagação:
- Do you think I'm beautiful? (- Você me acha bonita?)
Fiz-lhe os elogios de praxe. Ela esticou-se novamente e concordou comigo:
- You're right. I'm very beautiful. But morally, I stink! (- Você está certo. Eu sou muito bonita. Mas moralmente eu... como traduzir sem ofender tanta beleza, tirante os ouvidos do leitor? - não cheiro muito bem.)
Dito o quê, partiu como chegara, através da mesma cortina, para onde suponho houvesse um bar privado. Só sei que aquilo deu-me uma grande animação, a festa continuou até "Ele" raiar e eu acabei dançando com a linda moça, ela bastante mais alta do que eu, o que permitia ouvir-lhe bater o coração, de resto levemente taquícárdico. Antes de sair vi vários casais no Jardim que não se sabia mais quem era quem, vi Sonny Tuffs atravessado num sofá, vi coisas como só se vê em baile de carnaval. Festinha familiar, como diria a finada dona Sinhazinha.
Fora perguntei a Carmen se ela sabia quem era a deusa.
- É uma atriz nova que está entrando agora. Bonita, não é? Chama-se Ava Gardner

A Charge de Chico Caruso

Hiram Powers, 1850-55, California

Primícias da prima


PRIMÍCIAS DA PRIMA
Charles Fonseca


Por uma horrível  censura

Passada mais de uma década
A flor abriu-se em pétala
Mas na cabeça a tonsura


Impediu gozo vicário
Da cabaça a flor do mel
Amargou o travo fel
O barrado vate vário


Que barra pesada aquela
A flor no peitoril
À janela céu anil
Só os dois a gemer ela


A flor toda orvalhada
Em cálice turgescente
O peito arfante à frente
O corpo em rebolado


E o poeta em carvalho
E a flor em junco tenra
Nele se encosta e esquenta
Pobre poeta espantalho


A cabeça mais a cima
Menos aquela de baixo
Oh tragédia baixa o facho
Vai-se o vate chora a prima.

Você tem fé de mais ou fé de menos?



Frase do dia

Na verdade, quem tinha o comando era o presidente Lula; José Dirceu era o segundo.
Senador Álvaro Dias (PSDB-PR), sobre a divulgação de documentos que mostram a atuação de José Dirceu quando ministro da Casa Civil

domingo, agosto 19, 2012

A sogra. Freud.

A sogra. Freud.

“A identificação simpática da mãe com a filha pode facilmente ir tão longe que ela própria se apaixone pelo homem que a filha ama e, em exemplos extremos, isto pode levar a formas graves de doença neurótica, como resultado das violentas lutas mentais contra esta situação emocional. De qualquer modo, acontece muito frequentemente uma sogra estar sujeita a um impulso para este tipo de paixão e este próprio impulso ou uma condição oposta são acrescidos ao tumulto das forças conflitantes em sua mente. E muitas vezes os compromissos cruéis e sádicos de seu amor são dirigidos para o genro, a fim de que os afetuosos e proibidos possam ser mais severamente proibidos.” Freud.

Caetano Veloso. Sozinho

História da Arte 05 - Renascimento

PERGUNTO AO RELÓGIO
Charles Fonseca

Por que não te adiantas relógio
Por que não a posso logo ver
Ao menos ouvi-la, alegra o ser
Por que não te adiantas relógio?

Por que não te atrasas relógio
No tempo do meu passado
Quando a ouvi, toquei, bom fado
Por que não te atrasas relógio?

Por me opões tão longa prova
De ficar dela só com a imagem
Longa estrada, longa viagem,
Até que a abrace a beije em nova?

Você, mulher, você merece um tango!

sábado, agosto 18, 2012

O mais aguerrido zagueiro do time joga para atrapalhar o julgamento do mensalão

http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/o-mais-aguerrido-zagueiro-do-time-que-joga-para-atrapalhar-o-julgamento-do-mensalao/

Calazans Neto

«Creio em um só Deus»

200. É com estas palavras que começa o Símbolo Niceno-Constantinopolitano. A confissão da unicidade de Deus, que radica na Revelação divina da Antiga Aliança, é inseparável da confissão da existência de Deus e tão fundamental como ela. Deus é único; não há senão um só Deus: «A fé cristã crê e professa que há um só Deus, por natureza, por substância e por essência» (2).

201. A Israel, seu povo eleito, Deus revelou-Se como sendo único: «Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5). Por meio dos profetas, Deus faz apelo a Israel e a todas as nações para que se voltem para Ele, o Único: «Voltai-vos para Mim, e sereis salvos, todos os confins da terra, porque Eu sou Deus e não há outro [...] Diante de Mim se hão-de dobrar todos os joelhos, em Meu nome hão-de jurar todas as línguas. E dirão: "Só no Senhor existem a justiça e o poder"» (Is 45, 22-24) (3).

202. O próprio Jesus confirma que Deus é «o único Senhor», e que é necessário amá-Lo «com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças» (4). Ao mesmo tempo, dá a entender que Ele próprio é «o Senhor» (5). Confessar que «Jesus é o Senhor» é próprio da fé cristã. Isso não vai contra a fé num Deus Único. Do mesmo modo, crer no Espírito Santo, «que é Senhor e dá a Vida», não introduz qualquer espécie de divisão no Deus único:

«Nós acreditamos com firmeza e afirmamos simplesmente que há um só Deus verdadeiro, imenso e imutável, incompreensível, todo-poderoso e inefável. Pai e Filho e Espírito Santo: três Pessoas, mas uma só essência, uma só substância ou natureza absolutamente simples»(6).
Catecismo

Djavan. Pétala

Oração pela família. Padre Zezinho.

ORAÇÃO PELA FAMÍLIA
Padre Zezinho

Que nenhuma família comece em qualquer de repente
Que nenhuma família termine por falta de amor
Que o casal seja um para o outro de corpo e de mente
E que nada no mundo separe um casal sonhador!

Que nenhuma família se abrigue debaixo da ponte
Que ninguém interfira no lar e na vida dos dois
Que ninguém os obrigue a viver sem nenhum horizonte
Que eles vivam do ontem, do hoje em função de um depois!

Que a família comece e termine sabendo onde vai
E que o homem carregue nos ombros a graça de um pai
Que a mulher seja um céu de ternura, aconchego e calor
E que os filhos conheçam a força que brota do amor!

Abençoa, Senhor, as famílias! Amém!
Abençoa, Senhor, a minha também

Que marido e mulher tenham força de amar sem medida
Que ninguém vá dormir sem pedir ou sem dar seu perdão
Que as crianças aprendam no colo, o sentido da vida
Que a família celebre a partilha do abraço e do pão!

Que marido e mulher não se traiam, nem traiam seus filhos!
Que o ciúme não mate a certeza do amor entre os dois!
Que no seu firmamento a estrela que tem maior brilho,
Seja a firme esperança de um céu aqui mesmo e depois!

Que a família comece e termine sabendo onde vai
E que o homem carregue nos ombros a graça de um pai
Que a mulher seja um céu de ternura, aconchego e calor
E que os filhos conheçam a força que brota do amor!

Jean Léon Gérôme, The Gladiators - 1878 Copenhagen, Ny Carlsberg Glypote

A falha


A FALHA
Charles Fonseca

Uma coisa é a fala
Outra o que faço dela
No intervalo na lamela
Na borda onde há falha

Do gozo eu só desejo
Só falta me impulsiona
Meu ser barco sobre a onda
Ou ao porto onde achego.

sexta-feira, agosto 17, 2012

Renoir: Le Déjeuner des Canotiers (1881) - Phillips Collection, Washington

O Pediatra. Nelson Rodrigues

O Pediatra
Nelson Rodrigues


Saiu do telefone e anunciou para todo o escritório:

— Topou! Topou!

Foi envolvido, cercado por três ou quatro companheiros. O Meireles cutuca:

— Batata?

Menezes abre o colarinho: — "Batatíssima!". Outro insiste:

— Vale? Justifica?

Fez um escândalo:

— Se vale? Se justifica? Ó rapaz! É a melhor mulher do Rio de Janeiro! Casada e te digo mais: séria pra chuchu!

Alguém insinuou: — "Séria e trai o marido?". Então, o Menezes improvisou um comício em defesa da bem-amada:

— Rapaz! Gosta de mim, entende? De mais a mais, escuta: o marido é uma fera! O marido é uma besta!

Ao lado, o Meireles, impressionado, rosna:

— Você dá sorte com mulher! Como você nunca vi! — E repetia, ralado de inveja: — Você tem uma estrela miserável!


O AMOR IMORTAL


Há três ou quatro semanas que o Menezes falava num novo amor imortal. Contava, para os companheiros embasbacados: — "Mulher de um pediatra, mas olha: — um colosso! ". Queriam saber: — "Topa ou não topa?". Esfregava as mãos, radiante:

— Estou dando em cima, salivando. Está indo.

Todas as manhãs, quando o Menezes pisava no escritório, os companheiros o recebiam com a pergunta: — "E a cara?". Tirando o paletó, feliz da vida, respondia:

— Está quase. Ontem, falamos no telefone quatro horas! Os colegas pasmavam para esse desperdício: - "Isso não é mais cantada, é ...E o vento levou". Meireles sustentava o princípio que nem a Ava Gardner, nem a Cleópatra justificam quatro horas de telefone. Menezes protestava:

— Essa vale! Vale, sim senhor! Perfeitamente, vale! E, além disso, nunca fez isso! É de uma fidelidade mórbida! Compreendeu? Doentia!

E ele, que tinha filhos naturais em vários bairros do Rio de Janeiro, abandonara todos os outros casos e dava plena e total exclusividade à esposa do pediatra. Abria o coração no escritório:

— Sempre tive a tara da mulher séria! Só acho graça em mulher séria!

Finalmente, após quarenta e cinco dias de telefonemas desvairados, eis que a moça capitula. Toda a firma exulta. E o Menezes, passando o lenço no suor da testa, admitia: — "Custou, puxa vida! Nunca uma mulher me resistiu tanto!". E, súbito, o Menezes bate na testa:

— É mesmo! Está faltando um detalhe! O apartamento! Agarra o Meireles pelo braço: — "Tu emprestas o teu?". O outro tem um repelão pânico:

— Você é besta, rapaz! Minha mãe mora lá! Sossega o periquito!

Mas o Menezes era teimoso. Argumenta:

— Escuta, escuta! Deixa eu falar. A moça é séria. Séria pra burro. Nunca vi tanta virtude na minha vida. E eu não posso levar para uma baiúca. Tem que ser,olha: — apartamento residencial e familiar. É um favor de mãe pra filho caçula.

O outro reagia: — "E minha mãe? Mora lá, rapaz!". Durante umas duas horas, pediu por tudo:

— Só essa vez. Faz o seguinte: — manda a tua mãe dar uma volta. Eu passo lá duas horas no máximo!

Tanto insistiu que, finalmente, o amigo bufa:

— Vá lá! Mas escuta: — pela primeira e última vez! Aperta a mão do companheiro:

— És uma mãe!


DECISÃO


Pouco depois, Menezes ligava para o ser amado: — Arranjei um apartamento genial.

Do outro lado, aflita, ela queria saber tudinho: "Mas é como, hein?". Febril de desejo, deu todas as explicações: — "Um edifício residencial, na rua Voluntários. Inclusive, mora lá a mãe de um amigo. Do apartamento, ouve-se a algazarra das crianças". Ela, que se chamava Ieda, suspira:

— Tenho medo! Tenho medo!

Ficou tudo combinado para o dia seguinte, às quatro da tarde. No escritório, perguntaram:

— E o pediatra?

Menezes chegou a tomar um susto. De tanto desejar a mulher, esquecera completamente o marido. E havia qualquer coisa de pungente, de tocante, na especialidade do traído, do enganado. Fosse médico de nariz e garganta, ou simplesmente de clínica geral, ou tisiólogo, vá lá. Mas pediatra! O próprio Menezes pensava: — "Enquanto o desgraçado trata de criancinhas, é passado pra trás!". E, por um momento, ele teve remorso de fazer aquele papel com um pediatra. Na manhã seguinte, com a conivência de todo o escritório, não foi ao trabalho. Os colegas fizeram apenas uma exigência: — que ele contasse tudo, todas as reações da moça. Ele queria se concentrar para a tarde de amor. Tomou, como diria mais tarde, textualmente, "um banho de Cleópatra". A mãe, que era uma santa, emprestou-lhe o perfume. Cerca do meio-dia, já pronto e de branco, cheiroso como um bebê, liga para o Meireles:

— Como é? Combinaste tudo com a velha?

— Combinei. Mamãe vai passar a tarde em Realengo. Menezes trata de almoçar. "Preciso me alimentar bem", era o que pensava. Comeu e reforçou o almoço com uma gemada. Antes de sair de casa, ligou para Ieda:

— Meu amor, escuta. Vou pra lá. E ela:

— Já?

Explica:

— Tenho que chegar primeiro. E olha: vou deixar a porta apenas encostada. Você chega e empurra. Não precisa bater. Basta empurrar.

Geme: — "Estou nervosíssima!".

E ele, com o coração aos pinotes:

— Um beijo bem molhado nesta boquinha.

— Pra ti também.


ESPANTO


Às três e meia, ele estava no apartamento, fumando um cigarro atrás do outro. Às quatro, estava junto à porta, esperando. Ieda só apareceu às quatro e meia. Ela põe a bolsa em cima da mesa e vai explicando:

— Demorei porque meu marido se atrasou.

Menezes não entende: — "Teu marido?", e ela:

— Ele veio me trazer e se atrasou. Meu filho, vamos que eu não posso ficar mais de meia hora. Meu marido está lá embaixo, esperando.

Assombrado, puxa a pequena: — "Escuta aqui. Teu marido? Que negócio é esse? Está lá embaixo! Diz pra mim: — teu marido sabe?". Ela começou:

— Desabotoa aqui nas costas. Meu marido sabe, sim. Desabotoa. Sabe, claro.

Desatinado, apertava a cabeça entre as mãos: — "Não é possível! Não pode ser! Ou é piada tua?". Já impaciente, Ieda teve de levá-lo até a janela. Ele olha e vê, embaixo, obeso e careca, o pediatra. Desesperado, Menezes gagueja: — "Quer dizer que...". E, continua: "Olha aqui. Acho melhor a gente desistir. Melhor, entende? Não convém. Assim não quero".

Então, aquela moça bonita, de seio farto, estende a mão:

— Dois mil cruzeiros. É quanto cobra o meu marido. Meu marido é quem trata dos preços. Dois mil cruzeiros.

Menezes desatou a chorar.

Ele é poeta.

ELE É POETA
(autor desconhecido)

É noite. A chuva chora na calçada
como se fosse a mágoa recalcada
que subisse do peito dos humanos
e retumbasse em lágrimas na terra. 

Minha mãe chora, 
chora os desenganos de um filho 
que é poeta e desgraçado.
“Meu Deus! Onde andará ele agora?
Erra pela cidade úmida e deserta, 
como um boêmio despreocupado”.

E, recostada à janela aberta,
minha mãe espia a rua e espera:
“Hoje por certo virá mais cedo.
Faz tanto frio, sinto tanto medo...”
E, fatigada com uma dor no coração,
pensa em Deus e faz uma triste oração:
“Oh, Jesus, pastor divino,
tem misericórdia de mim, Senhor!
Traze o meu filho, o meu pobre filho
que erra pela cidade sem fim".

Um vulto! Talvez seja ele... mas... não, não é.
E já desponta cálido o sol.
Meus olhos fatigados de vigília não descansarão jamais.
Mas tenho fé. Amanhã eu lhe direi raivosa, assim:
“Você é a ovelha má desta família. 
Não é mais meu!”
Mas... ai que vida de abrolhos!
Não posso dizer assim. Ele é tão bom, tão delicado, 
que se eu disser em tom zangado, 
encontrarei nele o mesmo sorriso de menino
e uma lágrima boiando-lhe nos olhos.
Coitado de meu filho, arte abjeta, 
pobre do meu filho, ele é poeta!

O temor de José Dirceu

Transtorno bipolar

http://www.manualmerck.net/?id=110&cn=963&ss=transtorno%20bipolar

O morcego da flora

O MORCEGO DA FLORA
Charles Fonseca


Adeja o morcego na noite afora
Nas sombras, na noite, só trevas, silente
Arqueja, almeja o fruto somente
É fauna, semente devolve à flora.

É cego, soturno, só frutos procura
Devolve à terra, sementes, exangue
Só frutos consome, não gosta de sangue
Só come o fruto, repõe a natura.

Edwearde Muybridge

Cartãozinho de Natal . Stanislaw Ponte Preta. Prosa

Cartãozinho de Natal
Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)


Até que eu não sou de reclamar, puxa! Taí, se há alguém que não é de reclamar, sou eu. Pago sempre e não bufo. Claro que procuro me defender da melhor maneira possível, isto é, chateando o patrão, cobrando cada vez mais, buscando o impossível — como diz Tia Zulmira —, ou seja, equilíbrio orçamentário. Se o Banco do Brasil não tem equilíbrio orçamentário, eu é que vou ter, é ou não é?

Mas a gente luta. Eu ganho cada vez mais e nem por isso deixo de terminar sempre o mês que nem time de Zezé Moreira: 0 x 0. Segundo cálculos da tia acima citada, que é bárbara para assuntos econômicos, eu sou um dos homens mais ricos do Brasil, pois consigo chegar ao fim do mês sem dever. Esta afirmativa não me agrada nada, mas dá uma pequena amostra de como vai mal a organização administrativa do nosso querido Brasil.

Aliás, minto...o cronista pede desculpas, mas estava mentindo. Eu vou no empate até dezembro, porque, quando chega o Natal, é fogo. Aí embaralha tudo. Não há tatu que resista aos compromissos natalinos. São as Festas — dizem.

O presente das crianças, a ganância do comerciante, as gentilezas obrigatórias, os orçamentos inglórios, a luta do consumidor, a malandragem do fornecedor e olhe nós todos envolvidos nesse bumba-meu-boi dos presentinhos.

E que fossem só os presentinhos. A gente selecionava, largava uma lembrancinha nas mãos dos amigos com o clássico letreiro: "Você não repare, que é presente de pobre" e ia maneirando. Mas tem as listas, tem os cartõezinhos.

O que me chateia são as listas e os cartõezinhos. A gente passa o mês todo comprando coisas pros outros sem a menor esperança de que os outros estejam comprando coisas pra gente. De repente, quando o retrato do falecido Almirante Pedro Álvares Cabral, que, no caminho para as Índias, ao evitar as calmarias, etc., etc. já é um raro no bolso dos coitados do que deputado em Brasília, vem um de lista.

O de lista é sempre meio encabulado. Empurra a lista assim na nossa frente e diz: — O pessoal todo assinou. Fica chato se você não assinar. Então a gente dá uma olhada. A lista abre com uma quantia polpuda — quase sempre fictícia — que é pra animar o sangrado. E tem a lista dos contínuos, tem a lista dos porteiros, tem a lista dos faxineiros, tem a lista das telefonistas, tem a lista do raio que te parta.

A gente assina a lista meio humilhado, porque, no máximo, pode contribuir com duzentas pratas, onde está estampada a figura de Pedro I, que às margens do Ipiranga, desembainhando a espada, etc., etc. e pensa que está livre, embora outras listas estejam de tocaia, esperando a gente.

Então tá. Há um momento em que os presentinhos já estão todos comprados, as listas já estão todas assinadas e você já está com mais ponto perdido na tabela do que o time do Taubaté. Deve pra cachorro, mas vai dever mais.

Vai dever mais porque faltam os cartõezinhos de apelação. A campainha toca, você abre para saber quem está batendo e é o lixeiro. Ele não diz nada. Entrega um envelopezinho, a gente abre e lá está o versinho: "Mil votos de Boas Festas/ Seja feliz o ano inteiro/ É o que ora lhe deseja/ O vosso humilde lixeiro."

E o vosso humilde lixeiro espalma sorridente a estira que a gente larga na mão dele. Meia hora depois a campainha toca. Desta vez — quem sabe? — é uma cesta de Natal que um bacano teve a boa idéia de enviar. Mas qual. É o carteiro, fardado e meio sem jeito, que passa outro cartãozinho de apelação. A gente abre o envelope e lá está: "Trazendo a correspondência/ Faça frio ou calor/ Vosso carteiro modesto/ Prossegue no seu labor/ Mas a cartinha que trás/ Nesta oportunidade/ É para desejar Boas Festas/ E muita felicidade."

Mas este ano eu aprendi, irmãos! Em 1963 vou comprar diversas folhas de papel (tamanho ofício) e organizar várias listas para as criancinhas pobres aqui da casa. Quando o cara vier com a dele, eu neutralizo a jogada com a minha. O máximo que pode acontecer é ele assinar 500 na minha e eu assinar 500 na dele... ficando a terceira da melhor de três para disputar mais tarde.

Também vou mandar prensar uns cartõezinhos. Quando o vosso humilde lixeiro ou o vosso carteiro modesto entregar o envelopinho, eu entrego outro a ele, para que leia: "No Inferno das notícias/ Mas com expressão seráfica/ Eu batuco o ano inteiro/ A máquina datilográfica/ Pro ano que vai entrar/ Não me sinto otimista/ Mesmo assim, felicidades/ Lhe deseja este cronista."

Conforme diz Tia Zulmira: "— Malandro prevenido dorme de botina."

quinta-feira, agosto 16, 2012

Tudo pelo voto de Peluzo

A falta

A FALTA
Charles Fonseca.

De novo à deriva
Sem porto seguro
Tateio no escuro
Bordejo a ferida.

Com outra me pego,
Me é curativo,
Acaso na vida,
É ela o que quero?

Só ela obtura
Meu oco escuro
Acaso reluzo
Suas horas escuras?

Construção - Chico Buarque (1971). 1

quarta-feira, agosto 15, 2012

Luz, câmera, esculhambação. João Ubaldo Ribeiro

Luz, câmera, esculhambação
João Ubaldo Ribeiro

Meu avô de Itaparica, o inderrotável Coronel Ubaldo Osório, não era muito dado a novas tecnologias e à modernidade em geral. Jamais tocou em nada elétrico, inclusive interruptores e pilhas. Quando queria acender a luz, chamava alguém e mantinha uma distância prudente do procedimento. Tampouco conheceu televisão, recusava-se. A gente explicava a ele o que era, com pormenores tão fartos quanto o que julgávamos necessário para convencê-lo, mas não adiantava. Ele ouvia tudo por trás de um sorriso indecifrável, assentia com a cabeça e periodicamente repetia "creio, creio", mas, assim que alguém ligava o aparelho, desviava o rosto e se retirava. "Mais tarde eu vejo", despedia-se com um aceno de costas.

O único remédio que admitia em sua presença era leite de magnésia Phillips, assim mesmo somente para olhar, enquanto passava um raro mal-estar. Acho que ele concluiu que, depois de bastante olhado, o leite de magnésia fazia efeito sem que fosse necessário ingeri-lo. Considerava injeção um castigo severo e, depois que as vitaminas começaram a ser muito divulgadas, diz o povo que, quando queria justiçar alguma malfeitoria, apontava o culpado a um preposto e determinava: "Dê uma injeção de vitamina B nesse infeliz." Dizem também que não se apiedava diante das súplicas dos sentenciados à injeção de vitamina, enquanto eram arrastados para o patíbulo, na saleta junto à cozinha, onde o temido carcereiro Joaquim Ovo Grande já estava fervendo a seringa. (Naquele tempo, as seringas eram de vidro e esterilizadas em água fervente, vinha tudo num estojinho, sério mesmo.)

- Amoleça a bunda, senão vai ser pior! - dizia Ovo Grande, de sorriso viperino, olhos faiscantes e agulha em riste, numa cena a que nunca assisti, mas que não devia ser para espíritos fracos.

- Sim, mas acabo fazendo a biografia de meu avô e não chego ao assunto, que, pelo menos quando me sentei faz pouco para escrever, tinha a ver com fotografia. O coronel não evitava codaques, nome por que chamava indistintamente qualquer máquina fotográfica, mas só admitia ser fotografado se houvesse a preparação que ele considerava essencial. Nada do que então se chamava "instantâneo". Ele fazia a barba, tomava banho, vestia paletó e gravata, botava perfume e posava imóvel como uma rocha, diante da codaque. Daí a um mês, mais ou menos, as fotos voltavam, reveladas e copiadas, de um laboratório da cidade - e sua chegada era uma espécie de festa, que reunia parentes, amigos e correligionários.

Se o coronel estivesse vivo hoje, acho que acabaria tomando o leite de magnésia. Aproxima-se o dia em que seremos filmados, fotografados e monitorados em absolutamente todas as circunstâncias, inclusive no banheiro. Claro, reconheço que deliro um pouco, mas somente um pouco, quando imagino que, num futuro em que a água será escassa, cada morador terá cotas para todo tipo de uso da água e sofrerá penalidades diversas, se ultrapassá-las. Facilmente, a monitorização saberia quantas vezes e com que finalidade o freguês usou o vaso, estatística talvez considerada indispensável para a formulação de políticas sanitárias e de saneamento básico. Não saberemos como teremos vivido sem isso, até então.

Entrando em elevadores, dei para perceber gente olhando para as câmeras e se ajeitando como se fosse entrar no ar dentro de alguns instantes. Algumas moças chegam mesmo a passar a mão na nuca e ajeitar faceiramente os cabelos com um movimento de cabeça, como nos comerciais de xampus. Foi-se a manobra, tão praticada em gerações pretéritas, em que, tendo-se a sorte de encontrar no elevador a dadivosa e adrede acumpliciada vizinha do 703, apertava-se o botão de emergência, parava-se a cabine entre dois andares e davam-se os dois a um furtivo e inesquecível pecadilho da carne. O clipe já estaria no YouTube assim que ambos chegassem em casa, com dezenas de "visualizações", inclusive do marido e da família da vizinha.

Antigamente, a gente só tinha que dizer "que gracinha", "que beleza" ou "muito interessante" umas duas ou três vezes por amigo de boteco, no máximo. Era quando ele mostrava a foto da última neta, o retrato de toda a família junta ou um documento velho. Hoje a gente assiste a várias dezenas de clipes de celulares e sucessões de slides por dia, enquanto todo mundo fotografa e filma todo mundo, o tempo todo.

E outro dia, num noticiário de tevê, apareceu a notícia de um sequestro relâmpago em que um dos sequestradores filmou tudo com seu celular. Fico querendo adivinhar qual a razão para isso e me ocorre que, em muitos criminosos, suas ações talvez despertem um certo orgulho autoral e eles agora têm muitos recursos para documentar seus feitos para a História. De qualquer maneira, presenciamos o primeiro making of de um ato criminoso e espero somente que algum filósofo francês não saiba disso e publique um livro designando essa atividade como uma nova forma de arte, para que depois um porreta de uma agência governamental qualquer ache isso científico e premie com absoluta impunidade qualquer assalto, ou semelhantes, para o qual o seu autor haja preparado um making of de qualidade, gerando empregos e estimulando a arte. É bom viver onde o seguinte diálogo pode ocorrer:

- Então, como se foi de assalto hoje?

- Ah, legal. Só faltou me levar as calças, mas em compensação a crítica considera esse cara o melhor diretor de filmagem de assalto do Brasil, tablete de 12 megapixels, tudo muito profissional. Desta vez eu saio no Fantástico com certeza.

Porta aberta. Vicente Celestino

198. A nossa profissão de fé começa por Deus, porque Deus é «o Primeiro e o Último» (Is 44, 6), o Princípio e o Fim de tudo. O Credo começa por Deus Pai, porque o Pai é a Primeira Pessoa divina da Santíssima Trindade; o nosso Símbolo começa pela criação do céu e da terra, porque a criação é o princípio e o fundamento de todas as obras de Deus.

199. «Creio em Deus»: é esta a primeira afirmação da profissão de fé e também a mais fundamental. Todo o Símbolo fala de Deus; ao falar também do homem e do mundo, fá-lo em relação a Deus. Os artigos do Credo dependem todos do primeiro, do mesmo modo que todos os mandamentos são uma explicitação do primeiro. Os outros artigos fazem-nos conhecer melhor a Deus, tal como Ele progressivamente Se revelou aos homens. «Os fiéis professam, antes de mais nada, crer em Deus»(1).
Catecismo

Jean Antoine Houdon, The Cold Girl, 1783 Musée Fabre, Montpellier, France


Família. Rubem Fonseca

Família
Rubem Fonseca


Ernestino e Dora se casaram dispostos a dar ao mundo muitos filhos. Planejavam ter três meninos e duas meninas, mas não se incomodariam se fossem quatro meninas e um menino, desde que o primeiro a nascer fosse do sexo, masculino.

Dora morreu ao dar à luz uma menina, cujo nome veio a ser também Dora. Todos pensavam que Ernestino se casaria novamente, ele era um homem bonito, herdara do pai uma empresa e ampliara os negócios, um bom partido para qualquer mulher, mesmo tendo uma filha pequena para criar. Agindo como bons alcoviteiros, os casais amigos, convictos de que Ernestino devia se casar novamente, afinal a pequena Dora precisava de uma mãe e ele, cedo ou tarde, necessitaria do carinho de uma mulher, se revezavam apresentando ao viúvo jovens mulheres prendadas e virtuosas. Mas Ernestino não se interessava por nenhuma delas e o tempo foi passando até que os amigos, percebendo que Ernestino jamais se casaria novamente, desistiram de seus propósitos casamenteiros.

Quando Dora fez seis anos, Ernestino, assoberbado pelos seus negócios que não paravam de crescer, matriculou a menina num colégio interno de freiras. Dora se lembra do primeiro dia em que foi para o colégio. Eles subiram a serra de carro num dia de forte neblina, que escondia os morros e até mesmo as ruas por onde trafegavam. O pai comprara vários sacos de balas para ela e Dora fizera a viagem se deliciando com aquelas guloseimas. No carro o pai lhe mostrara uma pequena mala, dizendo que ali estava o seu enxoval, as roupas que usaria no colégio. Ernestino, apesar de fazer a viagem mais calado do que o seu normal, parou duas vezes no acostamento da estrada para abraçar e beijar a filha. Tudo isso a deixara muito feliz.

Quando chegaram, depois de uma hora e meia de viagem, Dora já havia chupado todas as balas. O colégio era um edifício, que lhe pareceu imenso, bonito e um pouco assustador. Foram recebidos por duas freiras uma a madre superiora, velha e de aspecto majestoso, e outra, mais jovem, que seria a orientadora e mestra de classe de Dora. A freira mais jovem convidou Dora para ir até a janela ver as arvores e os jardins. Enquanto ela contemplava o arvoredo coberto de neblina, o pai e as freiras conversaram em voz baixa. Em seguida, o pai depois de abraçá-la com tanta força que a deixou sem fôlego, disse que ia comprar mais balas, foi embora e não voltou. Era um domingo e Dora só o veria novamente no domingo seguinte.

Os primeiros dias foram terríveis. Dora se sentia abandonada e chorava sem parar. Ela dormia num grande salão com outras meninas da sua idade. Sua roupa intima — calcinhas largas de algodão, que com o tempo alargavam ainda mais, e camisolões de manga comprida fechados no pescoço (ela só usaria sutiã, também de algodão, anos depois) — era guardada numa mesinha alta de cabeceira, e os uniformes ficavam dependurados num cabide comprido numa das paredes. A freira orientadora reunia diariamente as meninas para uma preleção em que falava em Deus e na Caridade. Ela tratava Dora com muito carinho, ainda mais porque a menina sofria de asma, agravada pelo clima úmido da cidade. Depois de algum tempo, Dora parou de chorar diariamente. Chorava apenas aos domingos, quando o pai ia vê-la.

Mas ela não demorou muito a gostar do colégio. Na hora de dormir, sob os cobertores de lã que a aqueciam, Dona criava uma vida só dela, feita de fantasias inocentes. Até mesmo o carrilhão da torre da igreja, que soava a cada quinze minutos, era ouvido com prazer. Às quinze para as seis da manhã, a freira que pernoitava com elas no dormitório caminhava entre as camas tocando uma sineta de mão e dizendo, sursum corda e as meninas acordavam murmurando, habemus ad dominum. Dora, que fora criada sem qualquer disciplina por um pai ausente e babás displicentes, apreciava os cerimoniais do colégio. Vestidas em seus uniformes de saia azul-marinho presa por tiras largas cruzadas no, peito e nas costas, blusa azul-clara, sapatos pretos e meias brancas, as meninas, quando encontravam uma freira nos corredores, tinham que parar de pés juntos, unir as duas mãos e cumprimentar com a cabeça. Caso fosse a madre superiora ou a diretora do colégio deviam parar, se estivessem andando, ou levantar-se, se estivessem sentadas, e fazer uma reverência, que consistia em juntar os dois pés, encostar o calcanhar do pé direito no pé esquerdo, girar a ponta do pé direito, para o lado e. após colocar horizontalmente a palma da mão, direita sobre a palma da mão esquerda, flexionar ligeiramente os joelhos. Dora sentia-se bem fazendo essa mesura e ficava feliz quando, por qualquer motivo, encontrava uma dessas freiras graduadas. Os rituais do colégio — notadamente as orações em latim ou em francês, e os cantos gregorianos acompanhados pelo órgão, dos quais todas as alunas participavam nas missas dos domingos — possuíam um esplendor que deixava Dora encantada e fascinada. Mas sempre que pensava no pai, ela sentia muita saudade e ficava triste.

As alunas tomavam banho em boxes abertos, vestidas com uma camisola de algodão sem mangas e sem gola. Quando terminavam, uma freira colocava uma toalha aberta na frente do boxe para a aluna poder tirar a camisola e se enxugar sem que a sua nudez fosse vista; depois a aluna punha um roupão e subia para o dormitório, se curvava ao lado da sua cama e vestia meio escondida o uniforme. Era um procedimento trabalhoso e desconfortável que Dora e muitas meninas realizavam, porém, com boa vontade. Uma vez por semana, no dormitório, toda menina sentava-se num banco à frente de uma freira, que lhe passava meticulosamente pela cabeça um pente fino. Não havia piolhos naquele internato.

No colégio Dora conheceu Eunice, que se tornou a sua melhor amiga. E à medida que cresciam — as duas ficaram todo o primário e o ginásio no mesmo colégio interno — se tomaram mais íntimas. Sempre que possível ficavam de mãos dadas, cochichando e rindo. As freiras chamavam tal comportamento de bêtise e procuravam contê-las, mas sem recriminá-las por isso. Eunice era órfã, e quem a visitava nos domingos era um guardião que a tratava com um carinho artificial. Eunice e o seu guardião se agrupavam com Dora e o pai, nos domingos e também nos dias em que as alunas tinham permissão para sair do colégio, em companhia dos responsáveis, para passear em Petrópolis. Quando o curso ginasial terminou elas se abraçaram chorando e disseram que nunca deixariam de se amar.

Dora e Eunice cursaram o colegial em estabelecimentos de ensino diferentes. Vieram a se reencontrar na faculdade de direito, anos depois, e reataram com o mesmo vigor a amizade de antes. Abriram um escritório e advogavam juntas causas pertinentes ao direito da família. Dora às vezes ia dormir na casa de Eunice, ainda que Ernestino reclamasse carinhosamente do fato de a filha deixá-lo sozinho com a empregada. Ele sentia-se doente e planejava se afastar dos negócios. O seu sonho era ver a filha casar e lhe dar um neto homem, que com o tempo assumisse os negócios e continuasse a tradição da família.

Mas Dora, que se tornara uma mulher de grande beleza, recusava todos os seus pretendentes, que eram muitos. Saía com eles, ia jantar fora, ia ao cinema, mas, muito recatada, evitava qualquer intimidade com esses homens, nem mesmo permitia que a beijassem. Um dia o pai a chamou para ter com ela o que chamou de uma longa conversa. Ernestino disse à filha que estava indicando um dos seus antigos funcionários para assumir o comando dos negócios, pois estava se sentindo cada vez mais fraco e o seu médico, depois de um rigoroso exame, diagnosticara uma doença neurológica progressiva que dentro de alguns anos, não sabia quantos, o levaria à morte. E ele não queria morrer sem ver a sua filha casada e sem ter a suprema alegria de ter um neto. Ernestino disse isso com voz emocionada, segurando na mão da filha. Me promete, ele pediu, assim eu morrerei em paz. Dora prometeu, mas pediu algum tempo para realizar o desejo do pai.

Nesse dia Dora foi dormir com Eunice. A amiga mandara fazer calças largas de algodão iguais às que usavam no colégio de freiras, e que não existiam para ser compradas nas lojas. Vestidas apenas com essas calças, que apesar de toscas, ou talvez por isso, tornavam ainda mais atraentes os seus corpos delgados, as duas fizeram amor com um ardor muito intenso. Isso sim, é bêtise, disse Eunice, e as duas riram muito. Depois, Dora contou a Eunice a conversa que tivera com o pai, acrescentando que ele estava cada vez mais obstinado em seu desejo de vê-la casada e ter um neto. As duas permaneceram o resto da noite tomando vinho branco e falando desse assunto, e da frustração de não poder morar na mesma casa, acordar juntas, cozinhar, viajar, viver juntas o tempo todo das suas vidas, serem as duas uma família.

Ernestino agora precisava de uma cadeira de rodas para se locomover e um enfermeiro foi contratado para tomar conta dele. O médico disse que com cuidados adequados Ernestino poderia viver alguns anos, mas que a sua doença infelizmente não tinha cura, o que Dora podia fazer era lhe propiciar a melhor qualidade de vida possível, num ambiente tranqüilo de amor. O passatempo preferido de Ernestino, em casa ou quando ele saia com Dora em sua cadeira de rodas para passear na praça, era interrogar a filha sobre os seus pretendentes e escolher o nome que o neto teria. Dora participava dessas conversas tentando, manter a mesma paciência dos seus tempos de colégio interno, mas não conseguia deixar de se sentir exausta e infeliz, pois o pai sempre terminava a conversa dizendo que apenas esperava ela se casar e ter um filho para morrer em paz.

Após cada uma das suas cada vez mais raras noites de bêtise as duas amantes sempre voltavam a esse tema, como conseguir que Ernestino morresse em paz. E a maneira de resolver esse delicado e angustiante problema era sempre a mesma, uma solução final, por elas considerada um gesto de amor absoluto. A morte era sempre uma bênção para os doentes desenganados.

O enfermeiro, precisava tirar umas férias e em vez de contratar um outro Dora disse que ela mesma cuidaria do pai. Ernestino se emocionou com o desvelo da filha, que passava os dias e as noites ao seu lado. E também estava muito feliz, pois Dora prometera que assim que o pai melhorasse um pouco ela se casaria e teria um filho.

Transcorrido um mês, Ernestino morreu de uma súbita insuficiência respiratória. O médico confirmou que aquela era mesmo uma doença insidiosa de difícil prognóstico. No enterro Dora e Eunice choraram muito. O sofrimento de Dora foi tão grande que ela teve que ser internada num hospital para se recuperar.

Depois, Dora e Eunice foram morar juntas e adotaram um menino a quem deram o nome de Ernestino. O menino cresceu e as pessoas, os novos amigos que elas fizeram, diziam que ele era a cara da mãe.