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segunda-feira, agosto 31, 2009

Diana. Paul Anka. Música.

O artista e sua esposa. Aba Novak Vilmos.



SINGULAR. Charles Fonseca. Poesia.

SINGULAR
Charles Fonseca

O que leva um homem a querer uma mulher,
Que traços do passado um e outro carregam?
Que os faz transitar do amargo ao mel,
Os dois em que imaginário trafegam?

De quem ela está no lugar
E ele que outro olhar inclui?
Nela, por onde vaga o seu olhar,
Nele, o presente a que passado reflui?



domingo, agosto 30, 2009

sexta-feira, agosto 28, 2009

QUANDO O POETA DORME. Charles Fonseca. Poesia.

QUANDO O POETA DORME
Charles Fonseca

Quando o poeta dorme
Acordam restos diurnos
Em sonhos um tanto confusos
Desejos pequenos enormes.

Quando o poeta dorme
Dorme também sua fome
Mordem desejos de homem
Pede que a amada acorde

Quando o poeta acorda
Todo o sonho está desfeito
Em cinzas o fogo do leito
O cobrem, fecham-se portas.

quinta-feira, agosto 27, 2009

Êxtase de Santa Teresa. Escultura.



Uma carta

"Quando estou em seus braços minha alma encontra a sua e, juntas, distrai-se das coisas da terra, navegando pelos mares do infinito, dando-me a sensação de leveza somente compreendida pelos crentes na existência de espírito...

Milhões de diminutos sois transmitem luzes por todos os poros do meu ser, iluminando-me o corpo, caminho, por onde o seu transita com freqüência, franqueando-lhe os acessos a minha intimidade que se desmancha em prazer...

Seu corpo marcou-me com a marca aveludada do amor e por ela sou identificada em todos os lugares... Pertencemos, com certeza, ao amor que vive em nós, por nós... Oh meu Deus como eu gostaria de ser poeta para dizer-lhe com elegância o refinamento desse sentimento que suas atitudes construíram em mim!...

Como transformar em poesia os sussurros da minha alma encantada pela sua e que aprisionada jamais se sentiu tão livre?

Quero continuar para sempre ao seu lado. Ajudar a construir nosso lar. Ocupar nele um espaço imenso, mas deixar que participem conosco todos aqueles que fazem parte de nossas vidas pelos laços consangüíneos ou espirituais.

No meu imaginário nosso casa será,continuamente, um recanto de paz, de quietude quebrada pela suavidade das ações necessárias a manutenção da mesma. Cantos, risos, abraços e beijos misturados pelos cantos do lar...

Encantadora bagunça dos lençóis desordenados, das roupas voando pelos ares, na pressa de atender os desejos que não aprenderam a esperar...

Momentos de oração. Sim. De agradecimento a Deus que proporciona, a cada instante, benção de estarmos juntos.

Momentos de conversas. Longas conversas na cama despreocupados do mundo que lá fora se debate em agonia.

Ah meu amor, impossível não ser piegas quando, sozinha em casa, sinto-me plena de você que sei, está trabalhando, e pensa em mim...

Amo-o com a intensidade e a espontaneidade da criança que ainda não deixei de ser!

Venha querido!

Venha desfrutar da magia que transborda da vida que Deus criou e você pariu em mim!...

Um grande beijo, amado meu!"

quarta-feira, agosto 26, 2009

A sogra. Freud. Psicanálise.

A sogra. Freud.

“A identificação simpática da mãe com a filha pode facilmente ir tão longe que ela própria se apaixone pelo homem que a filha ama e, em exemplos extremos, isto pode levar a formas graves de doença neurótica, como resultado das violentas lutas mentais contra esta situação emocional. De qualquer modo, acontece muito frequentemente uma sogra estar sujeita a um impulso para este tipo de paixão e este próprio impulso ou uma condição oposta são acrescidos ao tumulto das forças conflitantes em sua mente. E muitas vezes os compromissos cruéis e sádicos de seu amor são dirigidos para o genro, a fim de que os afetuosos e proibidos possam ser mais severamente proibidos.” Freud.

Gauguin. Pintura.



segunda-feira, agosto 24, 2009

A Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas.

A Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas.

"Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História." (Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

domingo, agosto 23, 2009

O Maranhão pela lente de Glauber Rocha – 1966


CÂNTICOS DOS CÂNTICOS DO REI SALOMÃO

CÂNTICOS DOS CÂNTICOS DO REI SALOMÃO
Capítulo 2

1. Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales.
2. Como o lírio entre espinhos, assim é minha amada, entre as moças.
3. Como a macieira entre as árvores dos bosques, assim é o meu amado, entre os moços. À sombra de quem eu tanto desejara me sentei, e seu fruto é doce ao meu paladar.
4. Ele me introduziu na sua adega, e a sua bandeira sobre mim é Amor!
5. Sustentai-me com bolos de uvas, revigorai-me com maçãs, porque desfaleço de amor.
6. Sua mão esquerda está sob minha cabeça e sua direita me abraça.
7. Eu vos conjuro, mulheres de Jerusalém, pelas corças e gazelas do campo, que não desperteis nem façais acordar a amada, até que ela o queira.
8. É a voz do meu amado! Ei-lo que vem, saltando pelos montes, pulando por sobre as colinas.
9. Meu amado parece uma gazela, um filhote de corça. Ei-lo de pé atrás do muro, espiando pelas janelas, observando através das grades.
10. Meu amado me fala assim:
10. “Levanta-te, minha amada, minha rola, minha bela, e vem!
11. O inverno passou, as chuvas cessaram e já se foram.
12. Aparecem as flores no campo, chegou o tempo da poda, a rola já faz ouvir seu canto em nossa terra.
13. A figueira produz seus primeiros figos, soltam perfume as vinhas em flor. Levanta-te, minha amada, minha bela, e vem!
14. Minha rola, que moras nas fendas da rocha, no esconderijo escarpado, mostra-me o teu rosto e a tua voz ressoe aos meus ouvidos, pois a tua voz é suave e o teu rosto é lindo!”
15. Pegai as raposas, as pequenas raposas que devastam as vinhas, pois nossas vinhas estão em flor.
16. O meu amado é todo meu e eu sou dele. Ele é um pastor entre os lírios
17. até que surja o dia e fujam as sombras. Volta, meu amado, imita a gazela e o filhote da corça por sobre os montes de Beter.

sábado, agosto 22, 2009

Em Aracaju foi assim.


DSC08822, upload feito originalmente por Charles Fonseca.

O estudante de física. Charles Fonseca. Prosa.

Entrei no táxi. Conversa vai, conversa vem e o taxista me disse que ouviu de um psicanalista a afirmação de que para ele só valia a pena viver enquanto a sua mão alcançasse a sua bunda. E o taxista disse que achava que o psi, que eu conheço, meu colega, estava certíssimo. Disse, então, ao meu condutor: você conhece Stephen Hawking, um dos maiores físicos da humanidade? Ele só consegue mover do seu corpo precariamente três dedos da mão! Ao final da corrida o taxista me disse: “É... é por isso que gosto de ser taxista. A gente sempre aprende e hoje vou ter que repensar." O taxista também é estudante de física na Universidade.
Charles Fonseca.

quinta-feira, agosto 20, 2009

POEMA ESQUISITO. Adélia Prado

POEMA ESQUISITO
Adélia Prado

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

quarta-feira, agosto 19, 2009

Apropriação indébita. Freud.

“Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos [transferência e resistência] e os torne como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas teses, dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista”. Freud. 2

Sermão do Bom Ladrão Padre Antonio Vieira, 1685. VI

Sermão do Bom Ladrão
Padre Antonio Vieira, 1685

VI

Declarado assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse e digo que levam consigo os reis ao inferno. Que eles fossem lá sós, e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora, pois assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma dor que se não pode sofrer, e por isso nem calar. Mas se os reis tão fora estão de tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os mais roubados de todos, como levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes bons reis? Não por um só, senão por muitos modos, os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os conservam neles; o terceiro, porque os reis os adiantam e promovem a outros maiores; e, finalmente, porque, sendo os reis obrigados, sob pena de salvação, a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem. E quem diz isto já se sabe que há de ser Santo Tomás. Faz questão Santo Tomás, se a pessoa que não furtou, nem recebeu ou possui coisa alguma do furto, pode ter obrigação de o restituir. E não só resolve que sim, mas, para maior expressão do que vou dizendo, põe o exemplo nos reis. Vai o texto: Tenetur ille restituere, qui non obstat, cum obstare teneatur. Sicut principes, qui tenentur custodire justitiam in terra, si per eorum defectum latrones increscant, ad restitutionem tenentur, quia redditus, quos habent, sunt quasi stipendia ad hoc instituta, ut justitiam conservent in terra: Aquele que tem obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os ladrões, são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com que os povos os servem e assistem, são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham em justiça. — É tão natural e tão clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a conheceu, quando disse: Qui non vetat peccare, cum possit, jubet (11).

E se nesta obrigação de restituir incorrem os príncipes pelos furtos que cometem os ladrões casuais e involuntários, que será pelos que eles mesmos, e por própria eleição, armaram de jurisdições e poderes, com que roubam os mesmos povos? A tenção dos príncipes não é nem pode ser essa; mas basta que esses oficiais, ou de Guerra, ou de Fazenda, ou de Justiça, que cometem os roubos, sejam eleições e feituras suas, para que os príncipes hajam de pagar o que eles fizeram. Ponhamos o exemplo da culpa, onde a não pode haver. Pôs Deus a Adão no Paraíso, com jurisdição e poder sobre todos os viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas criadas, excepta somente uma árvore. Faltavam-lhe poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto não lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher — que muitas vezes são as terceiras — aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa roubaram. Já temos a Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão. E quem foi o que pagou o furto? Caso sobre todos admirável! Pagou o furto quem elegeu e quem deu o ofício ao ladrão. Quem elegeu e quem deu o ofício a Adão foi Deus: e Deus foi o que pagou o furto tanto à sua custa, como sabemos. O mesmo Deus o disse assim, referindo o muito que lhe custara a satisfação do furto e dos danos dele: Quae non rapui, tunc exolvebam (12). Vistes o corpo humano de que me vesti, sendo Deus; vistes o muito que padeci, vistes o sangue que derramei, vistes a morte a que fui condenado, entre ladrões. Pois, então, e com tudo isso, pagava o que não furtei. Adão foi o que furtou, e eu o que paguei: Quae non rapui, tunc exolvebam.

Pois, Senhor meu, que culpa teve vossa divina Majestade no furto de Adão? — Nenhuma culpa tive, nem a tivera, ainda que não fora Deus, porque na eleição daquele homem, e no ofício que lhe dei, em tudo procedi com a circunspecção, prudência e providência com que o devera e deve fazer o príncipe mais atento a suas obrigações, mais considerado e mais justo. Primeiramente, quando o fiz, não foi com império despótico, como as outras criaturas, senão com maduro conselho, e por consulta de pessoas não humanas, senão divinas: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram, et praesit (13). As partes e qualidades que concorriam no eleito eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem vício, reto sem injustiça, e senhor de todas suas paixões, as quais tinha sujeitas e obedientes à razão. Só lhe faltava a experiência, nem houve concurso de outros sujeitos na sua eleição, mas ambas estas coisas não as podia então haver, porque era o primeiro homem, e o único. — Pois, se a vossa eleição, Senhor, foi tão justa e tão justificada, que bastava ser vossa para o ser, por que haveis vós de pagar o furto que ele fez, sendo toda a culpa sua? — Porque quero dar este exemplo e documento aos príncipes, e porque não convém que fique no mundo tão má e perniciosa conseqüência, como seria, se os príncipes se persuadissem em algum caso que não eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros roubassem.

Michelangelo. Pintura.



terça-feira, agosto 18, 2009

domingo, agosto 16, 2009

sábado, agosto 15, 2009

Harmonia da tarde. Charles Baudelaire. Poesia

HARMONIA DA TARDE
Charles Baudelaire

Chegado é o tempo em que, vibrando o caule virgem,
Cada flor se evapora igual a um incensório;
Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo;
Melancólica valsa e lânguida vertigem!

Cada flor se evapora igual a um incensório;
Fremem violinos como fibras que se afligem;
Melancólica valsa lânguida vertigem!
É triste e belo o céu como um grande oratório.

Fremem violinos como fibras que se afligem,
Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório!
É triste e belo o céu como um grande oratório;
O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem.

Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório
Recolhem do passado as ilusões que o fingem!
O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem...
Fulge a tua lembrança em mim qual ostensório!

sexta-feira, agosto 14, 2009

Sermão do bom ladrão. Padre Antônio Vieira

Sermão do Bom Ladrão
Padre Antonio Vieira. 1655
V

Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit: furatur enim ut esurientem impleat animam. (10).O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi et publice exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Nou cessat simul furta, vel punire, vel facere: Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.

Matisse.

terça-feira, agosto 11, 2009

Itapuã 1970. Fotografia


Itapuã, década de 70.

Escrevo nas costas da mãe. Armando Freitas Filho. Poesia

ESCREVO NAS COSTAS DA MÃE
Armando Freitas Filho

Escrevo nas costas da mãe
conspurcada pelo amor
nas costas dos tios empertigados
pela indiferença e sarcasmo
na cara dos primos exemplares
reescrevo, corrijo, fazendo
pressão com o lápis rombudo
para marcar minha dissidência
na família programada, mas
sob os olhos sérios do pai
que me desencurva, e apoia
mesmo desconfiado
em palavra explícita para
não frisar demais sua intenção
seu ódio difuso que também
me atinge em forte trans
fusão, consigo, comigo mesmo
até alcançar a malvada consciência.

domingo, agosto 09, 2009

sexta-feira, agosto 07, 2009

O HAVER. Vinicius de Moraes. Poesia.

O HAVER
Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido…

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada…

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Sermão do Bom Ladrão Padre Antonio Vieira. 1655

Sermão do Bom Ladrão
Padre Antonio Vieira. 1655

IV

Suposta esta primeira verdade certa e infalível, a segunda coisa que suponho com a mesma certeza é que a restituição do alheio, sob pena da salvação, não só obriga aos súditos e particulares, senão também aos cetros e às coroas. Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes que, assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo, e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; e enquanto lei divina também os obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles. Esta verdade só tem contra si a prática e o uso. Mas por parte deste mesmo uso argumenta assim Santo Tomás, o qual é hoje o meu doutor, e nestas matérias o de maior autoridade: Terrarum principes multa a suis subditis violenter extorquent, quod videtur ad rationem rapinae pertinere; grave autem videtur dicere, quod in hoc peccent, quia sic fere omnes principes damnarentur. Ergo rapina in aliquo quo casu est licita. Quer dizer: A rapina ou roubo é tomar o alheio violentamente contra a vontade de seu dono; os príncipes tomam muitas coisas a seus vassalos violentamente, e contra sua vontade: logo, parece que o roubo é lícito em alguns casos, porque, se dissermos que os príncipes pecam nisto, todos eles, ou quase todos se condenariam: Fere omnes principes damnarentur. Oh! que terrível e temerosa conseqüência, e quão digna de que a considerem profundamente os príncipes, e os que têm parte em suas resoluções e conselhos! Responde ao seu argumento o mesmo Doutor Angélico, e, posto que não costumo molestar os ouvintes com latins largos, hei de referir as suas próprias palavras: Dicendum, quod si principes a subditis exigunt quod eis secundum justitiam debetur propter bonum commune conservandum, etiam si violentia adhibeatur; non est rapina. Si vero aliquid principes idebite extorqueant, rapina est, sicut et latrocinium. Unde ad restitutionem tenentur sicut et latrones. Et tanto gravius peccant quam latrones, quanto periculosius et communius contra publicam justitiam agunt, cujus custodes sunt positi: Respondo — diz Santo Tomás — que se os príncipes tiram dos súditos o que segundo justiça lhes é devido para conversação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina ou roubo. Porém, se os príncipes tomarem por violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde se segue que estão obrigado à restituição, como os ladrões, e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o dano com que ofendem a justiça pública, de que eles estão postos por defensores.

Até aqui acerca dos príncipes o Príncipe dos Teólogos. E por que a palavra rapina e latrocínio, aplicada a sujeitos da suprema esfera, é tão alheia das lisonjas que estão costumados a ouvir, que parece conter alguma dissonância, escusa tacitamente o seu modo de falar, e prova a sua doutrina o santo Doutor com dois textos alheios, um divino, do profeta Ezequiel, e outro pouco menos que divino, de Santo Agostinho. O texto de Ezequiel é parte do relatório das culpas por que Deus castigou tão severamente os dois reinos de Israel e Judá, um com o cativeiro dos assírios, e outro com o dos babilônios; e a causa que dá, e muito pondera, é que os seus príncipes, em vez de guardarem os povos como pastores, os roubavam como lobos: Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam (9).Só dois reis elegeu Deus por si mesmo, que foram Saul e Davi, e a ambos os tirou de pastores, para que, pela experiência dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam de tratar os vassalos; mas seus sucessores, por ambição e cobiça, degeneraram tanto deste amor e deste cuidado que, em vez de os guardar e apascentar como ovelhas, os roubavam e comiam como lobos: Quasi lupi rapientes praedam.

O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estóico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos, em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloqüentes mudos que mais ofendem os reis com o que calam, que com o que disserem, porque a confiança com que isto se diz é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala é argumento de que se ofenderão, porque lhes pode tocar. Mas passemos brevemente à terceira e última suposição, que todas três são necessárias para chegarmos ao ponto.

O Pensador. Rodin.



segunda-feira, agosto 03, 2009

IN PASSIM. Bruno Tolentino. Poesia.

IN PASSIM
Bruno Tolentino

Tudo vai-se acabando, tudo passa
do que é ao que era; é tudo mais
ou menos uns vestígios de fumaça
no espaço do que deixas para trás.

E tudo o que deixaste ou deixarás
de manso ou de repente, sem que faça
diferença nenhuma no fugaz,
é assim como a garoa na vidraça:

intimações de lágrima de lida.
Não valeu chorar nada. Nem te atrevas
a lamentar-te à porta da saída,

pois pouco importa a vida como a levas,
que ela te leva a ti, de despedida
em despedida, a uma lição de trevas.

sábado, agosto 01, 2009

ALUGA-SE. Raul Seixas. Música.



ALUGA-SE
Raul Seixas

A solução pro nosso povo
Eu vou dá
Negócio bom assim
Ninguém nunca viu
Tá tudo pronto aqui
É só vim pegar
A solução é alugar o Brasil!...

Nós não vamo paga nada
Nós não vamo paga nada
É tudo free!
Tá na hora agora é free
Vamo embora
Dá lugar pros gringo entrar
Esse imóvel tá prá alugar
Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

Os estrangeiros
Eu sei que eles vão gostar
Tem o Atlântico
Tem vista pro mar
A Amazônia
É o jardim do quintal
E o dólar dele
Paga o nosso mingau...

Nós não vamo paga nada
Nós não vamo paga nada
É tudo free!
Tá na hora agora é free
Vamo embora
Dá lugar pros gringo entrar
Pois esse imóvel está prá alugar
Alugar! Ei!
-Grande Solução!...

Nós não vamo paga nada
Nós não vamo paga nada
Agora é free!
Tá na hora é tudo free
Vamo embora
Dá lugar pros outro entrar
Pois esse imóvel tá prá alugar
Ah! Ah! Ah! Ah!
Nós não vamo paga nada
Nós não vamo paga nada
Agora é free!
Tá na hora é tudo free
Vamo embora
Dá lugar pros gringos entrar
Pois esse imóvel
Está prá alugar...

Está Prá Alugar Meu Deus!
Nós não vamo paga nada!
Nós não vamo paga nada!
É tudo free!
Vamo embora!

Sermão do Bom Ladrão. Padre António Vieira. (1655)

Sermão do Bom Ladrão
Padre António Vieira. (1655)

III

E para que um discurso tão importante e tão grave vá assentado sobre fundamentos sólidos e irrefragáveis, suponho primeiramente que sem restituição do alheio não pode haver salvação. Assim o resolvem com Santo Tomás todos os teólogos, e assim está definido no capítulo Si res aliena, com palavras tiradas de Santo Agostinho, que são estas: Si res aliena propter quam peccatum est, reddi potest, et non redditur, poenitentia non agitur sed simulatur. Si autem veraciter agitur non remittitur peccatum, nisi restituatur ablatum, si, ut dixi, restitui potest. Quer dizer: Se o alheio, que se tomou ou retém, se pode restituir, e não se restitui, a penitência deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não perdoa o pecado sem se restituir o roubado, quando quem o roubou tem possibilidade de o restituir. — Esta única exceção da regra foi a felicidade do Bom Ladrão, e esta a razão por que ele se salvou, e também o mau se pudera salvar sem restituírem. Como ambos saíram do naufrágio desta vida despidos e pegados a um pau, só esta sua extrema pobreza os podia absolver dos latrocínios que tinham cometido, porque, impossibilitados à restituição, ficavam desobrigados dela. Porém, se o Bom Ladrão tivera bens com que restituir, ou em todo, ou em parte o que roubou, toda a sua fé e toda a sua penitência, tão celebrada dos santos, não bastara a o salvar, se não restituísse. Duas coisas lhe faltavam a este venturoso homem para se salvar: uma como ladrão que tinha sido, outra como cristão que começava a ser. Como ladrão que tinha sido, faltava-lhe com que restituir; como cristão que começava a ser, faltava-lhe o Batismo; mas assim como o sangue que derramou na cruz lhe supriu o Batismo, assim a sua desnudez e a sua impossibilidade lhe supriu a restituição, e por isso se salvou. Vejam agora, de caminho, os que roubaram na vida, e nem na vida, nem na morte restituíram, antes na morte testaram de muitos bens e deixaram grossas heranças a seus sucessores, vejam onde irão ou terão ido suas almas, e se se podiam salvar.

Era tão rigoroso este preceito da restituição na lei velha, que, se o que furtou não tinha com que restituir, mandava Deus que fosse vendido, e restituísse com o preço de si mesmo: Si non habuerit quod pro furto reddat, ipse venundabitur (Êx. 22,3). De modo que, enquanto um homem era seu, e possuidor da sua liberdade, posto que não tivesse outra coisa, até que não vendesse a própria pessoa, e restituísse o que podia com o preço de si mesmo, não o julgava a lei por impossibilitado à restituição, nem o desobrigava dela. Que uma tal lei fosse justa não se pode duvidar, porque era lei de Deus, e posto que o mesmo Deus na lei da graça derrogou esta circunstância de rigor, que era de direito positivo; porém na lei natural, que é indispensável, e manda restituir a quem pode e tem com que, tão fora esteve de variar ou moderar coisa alguma, que nem o mesmo Cristo na cruz prometeria o Paraíso ao ladrão, em tal caso, sem que primeiro restituísse. Ponhamos outro ladrão à vista deste, e vejamos admiravelmente no juízo do mesmo Cristo a diferença de um caso a outro.

Assim como Cristo, Senhor nosso, disse a Dimas: Hodie mecum eris in Paradiso: Hoje serás comigo no Paraíso — assim disse a Zaqueu: Hodie salus domui huic facta est (Lc. 19,9): Hoje entrou a salvação nesta tua casa. — Mas o que muito se deve notar é que a Dimas prometeu-lhe o Senhor a salvação logo, e a Zaqueu não logo, senão muito depois. E por que, se ambos eram ladrões, e ambos convertidos? Porque Dimas era ladrão pobre, e não tinha com que restituir o que roubara; Zaqueu era ladrão rico, e tinha muito com que restituir: Zacheus princeps erat publicanorum, et ipse dives, diz o evangelista (2). E ainda que ele o não dissera, o estado de um e outro ladrão o declarava assaz. Por quê? Porque Dimas era ladrão condenado, e se ele fora rico, claro está que não havia de chegar à forca; porém Zaqueu era ladrão tolerado, e a sua mesma riqueza era a imunidade que tinha para roubar sem castigo, e ainda sem culpa. E como Dimas era ladrão pobre, e não tinha com que restituir, também não tinha impedimento a sua salvação, e por isso Cristo lha concedeu no mesmo momento. Pelo contrário, Zaqueu, como era ladrão rico, e tinha muito com que restituir, não lhe podia Cristo segurar a salvação antes que restituísse, e por isso lhe dilatou a promessa. A mesma narração do Evangelho é a melhor prova desta diferença.

Conhecia Zaqueu a Cristo só por fama, e desejava muito vê-lo. Passou o Senhor pela sua terra, e como era pequeno de estatura, e o concurso muito, sem reparar na autoridade da pessoa e do ofício: Princeps publicanorum, subiu-se a uma árvore para o ver, e não só viu, mas foi visto, e muito bem visto. Pôs nele o Senhor aqueles divinos olhos, chamou-o por seu nome, e disse-lhe que se descesse logo da árvore, porque lhe importava ser seu hóspede naquele dia: Zachee, festinans descende, quia hodie in domo tua oportet me manere (3). Entrou, pois, o Salvador em casa de Zaqueu, e aqui parece que cabia bem o dizer-lhe, que então entrara a salvação em sua casa; mas nem isto, nem outra palavra disse o Senhor. Recebeu-o Zaqueu e festejou a sua vinda com todas as demonstrações de alegria: Excepit illum gaudens (4), e guardou o Senhor o mesmo silêncio. Assentou-se à mesa abundante de iguarias, e muito mais de boa vontade, que é o melhor prato para Cristo, e prosseguiu na mesma suspensão. Sobretudo disse Zaqueu que ele dava aos pobres a metade de todos seus bens: Ecce dimidium bonorum meorum do pauperibus (5). E sendo o Senhor aquele que no dia do Juízo só aos merecimentos da esmola há de premiar com o reino do céu, quem não havia de cuidar que a este grande ato de liberalidade com os pobres responderia logo a promessa da salvação? Mas nem aqui mereceu ouvir Zaqueu o que depois lhe disse Cristo. — Pois, Senhor, se vossa piedade e verdade tem dito tantas vezes que o que se faz aos pobres se faz a vós mesmo, e este homem na vossa pessoa vos está servindo com tantos obséquios, e na dos pobres com tantos empenhos, se vos convidastes a ser seu hóspede para o salvar, e a sua salvação é a importância que vos trouxe à sua casa, se o chamastes, e acudiu com tanta diligência, se lhe dissestes que se apressasse: Festinans descende (6), e ele se não deteve um momento, por que lhe dilatais tanto a mesma graça que lhe desejais fazer, por que o não acabais de absolver, por que lhe não segurais a salvação?

Porque este mesmo Zaqueu, como cabeça de publicanos: Princeps publicanorum, tinha roubado a muitos, e como rico que era: Et ipse dives, tinha com que restituir o que roubara, e enquanto estava devedor e não restituía o alheio, por mais boas obras que fizesse, nem o mesmo Cristo o podia absolver, e por mais fazenda que despendesse piamente, nem o mesmo Cristo o podia salvar. Todas as outras obras, que depois daquela venturosa vista fazia Zaqueu, eram muito louváveis; mas enquanto não chegava a fazer a da restituição, não estava capaz da salvação. Restitua, e logo será salvo: e assim foi. Acrescentou Zaqueu que tudo o que tinha mal adquirido restituía em quatro dobros: Et si aliquem defraudavi, reddo quadruplum(7). E no mesmo ponto o Senhor, que até ali tinha calado, desfechou os tesouros de sua graça e lhe anunciou a salvação: Hodie salus domui huic facta est (8). De sorte que, ainda que entrou o Salvador em casa de Zaqueu, a salvação ficou de fora, porque, enquanto não saiu da mesma casa a restituição, não podia entrar nela a salvação. A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se pode perdoar sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum, nisi restituatur ablatum.