Pesquisar este blog

quinta-feira, julho 31, 2008

"Chão de Estrelas", Silvio Caldas.

"Chão de Estrelas", Silvio Caldas.

Velho mercado. Bernardo Belotto.
CANTIGA PARA NÃO MORRER
Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

quarta-feira, julho 30, 2008

Guillaume de Machaut 'Douce Dame Jolie'

A piedade. Giovanni Bellini.
ACORDAR, VIVER
Carlos Drummond de Andrade

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

terça-feira, julho 29, 2008

“God Save the Queen”, British Anthem.

Última comunhão e martírio de São Denis, Bellechose.

AS HERAS. Charles Fonseca

AS HERAS
Charles Fonseca

Ah se soubesse quantos filhos ais
Dão-nos quanto amor é concentrado
Nos poucos que tenho tão amados
Mais que três seriam muito mais

Teria em gozo pai não duas
Palavras três antes dos chegados
Entre ais colhidos na voragem
Antes dos meus foram tantas luas

Chegaram de outras mulheres feras
Colhidos não pecos nem maduros
Tenho agora três os seja eu muros
Enteada genro nora heras.

segunda-feira, julho 28, 2008

“La Vie En Rose” Edith Piaf, 1.954.

Frédéric Bazille.
AMAR DENTRO DO PEITO...
Manuel Maria Barbosa du Bocage

Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

domingo, julho 27, 2008

“O barquinho”, Nara Leão.

A libertação de São Pedro. Battistello. Pintura



À BEIRA DO VULCÃO. Charles Fonseca. Poesia.

À BEIRA DO VULCÃO
Charles Fonseca

Não sei de quem mais pena eu tenha
Se de mim longe do teu amor
Ou de ti pólo oposto rancor
Talvez dos dois nós iguais em penha

Das emoções recalcadas tantas
Do tanto falado e sem olvido
Do fundo dos tempos ressurgido
Novos vivos sepultado em campas

Dormitam fantasmas em dores hades
Das emoções terreais paixões
Roncam na terra e em explosões
Voltam à tona em nós saudades.


sábado, julho 26, 2008

“Águas de Março” , Tom Jobim e Elis Regina.

Guercino.
NO BAILE
Afonso Celso

Ontem ao contemplá-la decotada,
Ao primor do seu colo descoberto,
Senti-me tonto, da vertigem perto,
Fremente o pulso, a vista deslumbrada.

E, como em láctea fonte perfumada,
Sorvi-lhe sonhos mil no seio aberto,
Com a sede de um filho do deserto
Que encontre enfim a linfa suspirada.

Giram em derredor das níveas flores,
Sofregamente, insetos zumbidores ...
- Meus desejos então foram assim...

Mas arredei os olhos, de repente,
Pois meu olhar podia, de tão quente,
Crestar-lhe a fina cútis de cetim!

sexta-feira, julho 25, 2008


O triumfo do nome de Jesus, Baciccia. Clique na imagem.

CIRCADIANDO. Charles Fonseca

CIRCADIANDO
Charles Fonseca

Quando o caso não é caso
E o sol já é poente
A alma não fica doente
Revigorar é seu fado

A vida ultima esperança
Até ais viram suspiros
Põe-se o sol vem-nos o brilho
Estelar que ao orbe lança

Aos céus com os pés na terra
Os sonhos que se renovam
Renovos na alma brotam
Nova aurora o sol espera.

quinta-feira, julho 24, 2008

“Satisfaction”, The Rolling Stones –

Virgem anunciada. Antonelo da Messina.
LUZ DA NATUREZA
Cruz e Souza

Luz que eu adoro, grande Luz que eu amo,
Movimento vital da Natureza,
Ensina-me os segredos da Beleza
E de todas as vozes por quem chamo.

Mostra-me a Raça, o peregrino Ramo
Dos Fortes e dos Justos da Grandeza,
Ilumina e suaviza esta rudeza
Da vida humana, onde combato e clamo.

Desta minh'alma a solidão de prantos
Cerca com os teus leões de brava crença,
Defende com so teus gládios sacrossantos.

Dá-me enlevos, deslumbra-me, da imensa
Porta esferal, dos constelados mantos
Onde a Fé do meu Sonho se condensa!

terça-feira, julho 22, 2008

“Mora na filosofia”, Caetano Veloso.

Anunciação. Fra Angelico.

NATURA. Charles Fonseca

NATURA
Charles Fonseca

Eu quero um quarto de século
Pra minha vida tão curta
Quero teu corpo de murta
Ancas os quartos teu sexo

Um quarto quero de lua
Nua teu corpo em requebros
De prata a luz em reflexos
Silentes lambem a tua

Imagem cores em prata
Teu corpo na sua alvura
O meu no teu em loucura
Inteiro o cobre vergasta.

segunda-feira, julho 21, 2008

“Construção”, Chico Buarque.

A piedade. Andrea del Sarto.
POEMA 18
Pablo Neruda

Aqui te amo
Nos sombrios pinheiros desenreda-se o vento
a lua fosforesce sobre as águas errantes
andam dias iguais a perseguir-me.

Desperta-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata desprende-se do ocaso.
Às vezes uma vela. Altas, altas estrelas.

Ou a cruz negra de um barco.
Sozinho.
Às vezes amanheço e até a alma está úmida.
Soa, ressoa o mar ao longe.
Este é um porto.
Aqui te amo.

Aqui te amo e em vão te oculta o horizonte
Eu continuo a amar-te entre estas frias coisas
Às vezes vão meus beijos nesses navios graves
que correm pelo mar onde nunca chegam.

Já me vejo esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os cais quando fundeia a tarde.
A minha vida cansa-se inutilmente faminta.
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.

O meu tédio forceja com os lentos crepúsculos.
Mas a noite aparece e começa a cantar-me
A lua faz girar a sua rodagem de sonho.

Olha-me com os teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento
querem cantar o teu nome com as folhas de arame.

domingo, julho 20, 2008

“Esquadros”, Adriana Calcanhoto.

Crucificação. Altichiero da Zevio.

BRAILLE. Charles Fonseca

BRAILLE
Charles Fonseca

Eriçada leio em Braille
Tua pele em pleno gozo
Inefável eu suposto
Cavalgo sobre o entalhe

Do teu ser nós dois faltantes
Do real que pela morte
Do desejo todo forte
Nos constrói seres falantes.

sábado, julho 19, 2008

“Riacho do Navio”, Luiz Gonzaga.

A batalha de Issus. Albrecht Altdorfer.
A HORA ÍNTIMA
Vinicius de Moraes

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

sexta-feira, julho 18, 2008

"Fantasie" Chopin Impromptu, Op. 66

Marco Antônio e Cleópatra, Lawrence Alma-Tadema. Clique sobre a imagem para ampliá-la.
A FLOR QUE ÉS
Fernando Pessoa

A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.

quinta-feira, julho 17, 2008

Caetano Veloso - Eu Sei Que Vou Te Amar

A concha e a pérola. Alessandro Allori.

RODA D'ÁGUA. Charles Fonseca. Poesia.

RODA D'ÁGUA
Charles Fonseca

As águas passadas após o moinho
Antigas são elas, moveram a roda
Do tempo, da vida, e vão-se embora
E agora eu fico a cismar no caminho.

Virá nova água, o tempo não para,
Tampouco a vida, há sempre algo novo,
Nas voltas que a vida nos dá há tesouros
Que movem meu peito, moinho sob águas.

quarta-feira, julho 16, 2008

Haendel Le Messie Hallelujah Handel Aleluia Alelluia

Natal do Senhor, Correggio. Pintura



CARTAGO FUI EU
Jorge Tufic

Canta um pássaro morto sobre o dia
que a muitos outros já se misturou
algo abaixo dos ramos silencia,
treme a terra na pedra que restou.

Vem de que mares essa nostalgia
que meus ossos fenícios engessou?
De Cartago, talvez, da noite fria
transformada no pássaro que sou.

Esse canto noturno me extenua.
Vem de Cartago, sim; da negra lua
por dono o sol que abrasa, mas festeja.

Esplende a noite em látegos de urtiga.
Brinda-se à morte ao cálice da intriga.
Meu corpo, feito escombros, relampeja.

terça-feira, julho 15, 2008

Gal Costa - Divino Maravilhoso

Santa Apolonia, Francisco de Zurbarán.
BELO BELO
Manuel Bandeira

Belo Belo
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

segunda-feira, julho 14, 2008

“Pra não dizer que não falei das flores”, Geraldo Vandré.

"Mãe do artista", Whistler.
NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

domingo, julho 13, 2008

“Animals – Dogs” Pink Floyd.

A morte do general Wolf, Benjamin West.

A MEGA CENA. Charles Fonseca

A MEGA CENA
Charles Fonseca

Mais cifrado que cifrão
São dois que jogam de três
No quarto que sinto são seis
Imbricados num só vão

Cada qual no seu silêncio
Numa fala mentirosa
Recessiva vergonhosa
Da verdade do proscênio

De um amor que é impedido
Do desejo de ter falo
De alguém capturado
Por outrem além querido.

sábado, julho 12, 2008

“Aleluia!”, Handel.

La gamme de l'amour, Watteau.

Justificativa do poema. Roberto Almada. Poesia

JUSTIFICATIVA DO POEMA
Roberto Almada

As casas como as pessoas
são diferentes mas não outras,
ainda que sejam iguais;
às vezes menos, às vezes mais.

Foram feitas para guardar
num mesmo e único lugar
o que não foi consumido.

Na memória, o esquecido.
Numa parte deste quarto
as coisas de que me farto.

É um mesmo pó vertical.
Chame parede ou chame pele
ao círculo que as envolve,
ambas o tempo as dissolve.

Por dentro muito segredo.
Por fora silêncio e medo.

sexta-feira, julho 11, 2008

Ninguem me ama, Nora Ney

O jardim, Vuillard.
PRECE
Amélia de Oliveira

Não te peço a ventura desejada
nem os sonhos que outrora tu me deste,
nem a santa alegria que puseste
nessa doce esperança já passada.

O futuro de amor que prometeste
não te peço! Minha alma angustiada
já não te pede, de impossível, nada,
já não te lembra aquilo que esqueceste!

Nesta mágoa sorvida ocultamente,
nesta saudade atroz que me deixaste,
neste pranto que choro ainda por ti

nada te peço! Nada! Tão somente
peço-te agora a paz que me roubaste,
peço-te agora a vida que perdi!

quinta-feira, julho 10, 2008

“Tropicália”, Caetano Veloso.

Montanha, Konrad van Soest.
SONETO NOTURNO
Enzo Carlo Barrocco

Vem a noite de lilás e prata
pelas estradas arrastando as vestes
trazendo a lua que se mostra grata
ascendendo pelos lados lestes.

As paisagens já estão soturnas,
nos casebres, iluminação,
uma chuva que se fez noturna,
nos caminhos alguma assombração.

Tudo quieto, tudo tão parado
nesses sítios quando a noite vem
as pessoas se recolhem cedo,

pelos ermos não se vê ninguém,
não demora a madrugada rompe
um galo canta em outro sítio, além...

quarta-feira, julho 09, 2008

“Três Apitos”, Noel Rosa.

“Odisseu na gruta de Polifemo”, Peter van Cornelius.
HUMILIS
Germain Nouveau

Irmão, ó doce mendigo que cantas em pleno vento,
Ama-te como o ar do céu que ama o vento.

Irmão, que empurras os bois pelos montes de terra,
Ama-te como nos campos a gleba ama a terra.

Irmão, que fazes o vinho do sangue das uvas de ouro,
Ama-te como uma cepa que ama seus cachos de ouro.

Irmão, que fazes o pão, casca dourada e miolo,
Ama-te como no forno a casca ama o miolo.

Irmão, que fazes o hábito, alegre tecelão de pano,
Ama-te como em si a lã ama o pano.

Irmão, cujo barco fende o azul-verde das ondas,
Ama-te como no mar as marés amam as ondas.

Irmão, alaudista, alegre casador de sons,
Ama-te como sentimos a corda amar os sons.

Mas em Deus, irmão, sabe amar como a ti mesmo.
Teu irmão, e, quem quer que seja, que ele seja como ti mesmo.

terça-feira, julho 08, 2008

“O lago de Como”, Galos.

“Lady Hamilton”, Vigée-Lebrun.
O LUTO DO SERTÃO
João Cabral de Melo Neto

Pelo sertão não se tem como
não se viver sempre enlutado;
lá o luto não é de vestir,
é de nascer com, luto nato.

Sobe de dentro, tinge a pele
de um fosco fulo: é quase raça;
luto levado toda a vida
e que a vida empoeira e desgasta.

E mesmo o urubu que ali exerce,
negro tão puro noutras praças,
quando no sertão usa a batina
negra-fouveiro, pardavasca.

segunda-feira, julho 07, 2008

domingo, julho 06, 2008


Marte e Venus com Eros, Veronese.
OCASO NO MAR
Arthur de Salles

O céu a valva azul de uma concha semelha
De que outra valva é o mar ouriçado de escamas.
No ponto de junção, o sol - molusco em chamas -
Do bisso espalha no ar a incendida centelha.

Listões de intenso anil, raias de cor vermelha,
Grandes manchas de opala, arabescos e lhamas,
Da luz todos os tons, da cor todas as gamas
Vibram na valva azul que a valva verde espelha.

Mas todo este fulgor esmaece e se apaga.
Tímido, o olhar do sol bóia de vaga em vaga,
Porque uma sombra investe a sua concha enorme.

É a noite: como um polvo, insidiosa, se eleva.
Desenrola os seus mil tentáculos de treva:
E o sol, vendo-a crescer, fecha as valvas e dorme.
Elis Regina - Como Nossos Pais. 8.6

O batismo de Cristo. Verrocchio. Pintura


o batismo de Cristo. Verrocchio.
ELEGIA DESESPERADA
Vinicius de Moraes

Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

sábado, julho 05, 2008

Noite estrelada, Don McLean.

Barricada, Vernet.

QUE SOPREM AS CINZAS. Charles Fonseca. Poesia.

QUE SOPREM AS CINZAS
Charles Fonseca

Estou de novo a sós comigo mesmo
Curtindo uma saudade que me aperta
O peito que a acolheu qual porta aberta
Mas dele ela se foi, fiquei a esmo.

Nada então me alegra, tudo é tédio,
Vagueio pelas ruas sem consolo.
Repenso minha vida, fui um tolo?
De novo quero amar, é o remédio.

A solidão me envolve, me enlaça.
Meu coração em chamas foi fogueira.
Só resta agora a cinza borralheira,
Se o vento a leva, embaixo ainda há brasa.

Que braços sobre ela tragam lenho,
Que novos ventos brasa fogo aticem,
Que novas labaredas já crepitem,
Que nova amada chegue alegro o cenho.

sexta-feira, julho 04, 2008

“Cálice”, Chico Buarque e Milton Nascimento

Vista de Delft, Vermeer.
PROA
Edival Perrini

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Que venham as tormentas, que venha o que vier,
tenho o sonho comigo, o sonho é meu pastor.

O mundo da aparência não me engolirá.
Conheço bem suas manhas, meu ofício é interior:
girassol que é girassol tem proa pro amanhecer.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Com ele eu teço o mundo, reinvento a via-láctea.
Mistérios são bem-vindos, o sonho é meu pastor.

Ou eu busco a verdade ou ela não me achará.
Minha verdade, o sonho, é pomar e é brasão.
Seu universo, os versos, fio do sim e do não.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Encontro nele a luz, meu alimento e cor.
Que escorra a ampulheta, o sonho é meu pastor.

quinta-feira, julho 03, 2008

Caetano Veloso- Alegria,alegria

São João no deserto. Domenico Veneziano.
FUNDAÇÃO DA ARTE DE TE DESENHAR
Eduardo Galeano

Em algum leito do golfo de Corinto, uma mulher contempla, à luz do fogo, o perfil de seu amante adormecido. Na parede, reflete-se a sombra. O amante, que jaz ao seu lado, partirá. Ao amanhecer partirá para a guerra, partirá para a morte. E também a sombra, sua companheira de viagem, partirá com ele e com ele morrerá. Ainda é noite. A mulher recolhe um tição entre as brasas e desenha, na parede, o contorno da sombra. Esses traços não partirão. Não a abraçarão e ela sabe disso. Mas não partirão.
(texto do novo livro dele, "Espejos")

quarta-feira, julho 02, 2008

Chico Buarque e Nara Leão - A banda (ao vivo).

As meninas, Diego Velásquez.

REVOADA. Charles Fonseca. Poesia.

REVOADA
Charles Fonseca

Agora vem de mansinho
Acabou-se o meu sofrer
De saudade sem te ver
Volta a mim devagarzinho

Abrigar-te nas folhadas
De meus galhos no mistério
Das floradas desidério
De frutos pras passaradas

Passada toda a invernada
Tantos verões primaveras
Outonos tantas quimeras
Volta a mim ave amada!

terça-feira, julho 01, 2008


"Vénus de Urbino", de Ticiano.
A LÁGRIMA
(autor desconhecido)

Há uma lágrima sempre atenta aos nossos olhos,
Branca, pequena, clara, adamantina e pura
E como no mar há traiçoeiros escolhos
Ela, escondida, à flor das pálpebras procura.
Aí ficam parados os íntimos refolhos
E quando uma aventura nos entreabre os lábios com doçura
Ela, a lágrima, fica a nos tremer nos olhos.
Tu que és jovem, que ri e que não sabes da mágoa
Da vida, tem cuidado, olha essa gota d’água!
Se não queres achar-te no mundo entre abrolhos
Ri, mas ri devagar. Olha essa lágrima traiçoeira:
Talvez por ver-te rir assim desta maneira
Trema e caia afinal um dia dos teus olhos.