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sexta-feira, dezembro 28, 2007


Italia e Germania. Overbeck.
O OUTRO NA OUTRA

"Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para os objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos, ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto." Freud.

terça-feira, dezembro 25, 2007

POEMA DE NATAL
Vinicius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

sexta-feira, dezembro 21, 2007


Anne-Henriette de França tocando viola da gamba. Nattier.
O DESEJO VIVO DE MATAR

“O que chamamos de nosso ‘inconsciente’ – as camadas mais profundas de nossas mentes, compostas de impulsos instintuais – desconhece tudo o que é negativo e toda e qualquer negação; nele as contradições coincidem.”... O medo da morte, que nos domina com mais freqüência do que pensamos, é, por outro lado, secundário e, via de regra, o resultado de um sentimento de culpa. ”... “Nosso inconsciente não executa o ato de matar; ele simplesmente o pensa e o deseja.” Freud.

terça-feira, dezembro 18, 2007


A Virgem do Rosário. Murillo.
POEMA DOS OLHOS DA AMADA
Vinícius de Moraes

Oh minha amada, que olhos os teus
São cais noturnos cheios de adeus
São docas mansas trilhando luzes
Que brilham longe, longe nos breus
Oh minha amada, que olhos os teus
Quanto mistério nos olhos teus
Quantos saveiros, quantos navios
Quantos naufrágios, nos olhos teus
Oh minha amada de olhos ateus
Quem dera um dia quisesse Deus
Eu visse um dia o olhar mendigo
Da poesia nos olhos teus.

sexta-feira, dezembro 14, 2007


Wiege. Berthe Morisot.
A MORTE DA MORTE

“Só mais tarde as religiões conseguiram representar essa vida futura como a mais desejável, a única verdadeiramente válida, a reduzir a vida que termina com a morte a uma mera preparação. Depois disso, passou a ser apenas coerente estender a vida para trás até o passado, elaborar a noção de existências pretéritas, da transmigração das almas e da reencarnação, tudo com a finalidade de despojar a morte do seu significado de término da vida. Assim, a origem da negação da morte que descrevemos como “atitude convencional e cultural”, remonta aos tempos mais antigos”. Freud.

terça-feira, dezembro 11, 2007


A esfinge vencedora. Moreaux.

DESPETALANDO. Charles Fonseca. Poesia.

DESPETALANDO
Charles Fonseca

Quanto tempo não fui pai
Tantos filhos que não tive
Afetos que não obtive
Minha vida se esvai

Como a névoa da manhã
Pós a treva como o orvalho
Despetala flor do galho
Adormece a sorte vã

De esperar ao sol poente
Já em prata pêlos cãs
Acorda a esperança chã
De filhos ter novamente

Agora porém como netos
Meus quem sabe adotivos
Vão-se as paixões pelos idos
Vêm-me amores tão ternos!



sexta-feira, dezembro 07, 2007


Nascer do sol. Monet.
QUANDO DORME A MORAL

“Desde que aprendemos interpretar os sonhos, inclusive os mais absurdos e confusos, sabemos que sempre que vamos dormir nos despojamos de nossa moralidade arduamente conquistada como se fosse uma peça de vestuário, tornando a envergá-la na manhã seguinte.”.

terça-feira, dezembro 04, 2007


A crucificação. Lorenzo Monaco.

DO FUNDO DO POÇO. Charles Fonseca. Poesia.

DO FUNDO DO POÇO
Charles Fonseca

Quando a vida foi ao fundo
Do poço ficou ao léu
Nada em volta só o céu
A ver só tantos mundos!

Tão imundo então só viu
Alguém a lhe dar a mão
No orbe só sim - não, não,
Tal qual lua lhe sorriu

Ela a musa tão linda
Enluarada tão pura
Ele em abjeta natura
Subiu de novo alma limpa

Não mais da vida o labéu
Nem mais na vida algo vil
Tão perto por ela viu
De novo o amor por seu céu.


sexta-feira, novembro 30, 2007


A fiadeira. Millais.
ENTRE O CORPO E A ALMA
“A antítese entre consciente e inconsciente não se aplica aos instintos. Um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a idéia que o representa pode. Além disso, mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma idéia.” Freud.

terça-feira, novembro 27, 2007


A passagem do noroeste. Millais.
O AMOR
Victor Hugo

Pois que a beber me deste em taça transbordante,
E a fronte no teu colo eu tenho reclinado,
E respirei da tu’alma o hálito inebriante,
- Misterioso perfume à sombra derramado;

Visto que te escutei tanto segredo, tanto!
Que vem do coração, dos íntimos refolhos,
E tive o teu sorriso e enxuguei o teu pranto,
- A boca em minha boca e os olhos nos meus olhos;

Pois que um raio senti do teu astro, querida,
Dissipar-me da fronte as densas brumas frias,
Desde que vi cair na onda da minha vida
A pétala de rosa arrancada aos teus dias…

Posso agora dizer ao tempo, em seus rigores:
- Não envelheço, não! podeis correr, sem calma,
Levando na torrente as vossas murchas flores
Ninguém há de colher a flor que eu tenho n’alma!

Podeis com a asa bater, tentando, sem efeito,
A taça derramar em que me dessedento:
Do que cinzas em vós há mais fogo em meu peito;
E, em mim, há mais amor que em vós esquecimento!

sexta-feira, novembro 23, 2007


A dança de Salomé. Benozzo.
TENTATIVA DE FUGA

“Deve-se descrever uma repressão tal como ocorre numa fobia animal, como sendo radicalmente destituída de êxito. Ela apenas remove e substitui a idéia, falhando inteiramente em poupar o desprazer. É também por esse motivo que o trabalho da neurose não cessa. Prossegue até uma segunda fase, a fim de atingir seu mais importante e imediato propósito. O que se segue é uma tentativa de fuga – a formação da fobia propriamente dita, de um grande número de evitações destinadas a impedir a liberação da ansiedade”. Freud.

terça-feira, novembro 20, 2007

O fruto proibido. Michelangelo.
DIANTE DE UMA CRIANÇA
Carlos Drummond de Andrade

Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual
vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?

Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?

Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?

Submeter-me à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?

E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?

Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.

Pois o. amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.

sexta-feira, novembro 16, 2007


Beijo de Judas. Giotto.
VICISSITUDES DO INSTINTO
O fator quantitativo do representante instintual possui três vicissitudes possíveis, tal como podemos verificar pelo breve exame das observações feitas pela psicanálise: ou o instinto é inteiramente suprimido, de modo que não se encontra qualquer vestígio dele, ou aparece como um afeto que de uma maneira ou de outra é qualitativamente colorido, ou transformado em ansiedade. As duas últimas possibilidades nos apontam a tarefa de levar em conta, como sendo uma vicissitude instintual ulterior, a transformação em afetos, e especialmente em ansiedade, das energias psíquicas dos instintos. Freud.

terça-feira, novembro 13, 2007


Mestre do Wilton Diptych.
GRATUIDADE DAS AVES E DOS LÍRIOS.
Manoel de Barros.

Sempre que as gratuidades pousam em minhas palavras, elas são abençoadas por pássaros e por lírios.
Os pássaros conduzem o homem para o azul, para as águas, para as árvores e para o amor.
Ser escolhido por um pássaro para ser a árvore dele: eis o orgulho de uma árvore.
Ser ferido de silêncio pelo vôo dos pássaros: eis o esplendor do silêncio.
Ser escolhido pelas garças para ser o rio delas: eis a vaidade dos rios.
Por outro lado, o orgulho dos brejos é o de serem escolhidos por lírios que lhes entregarão a inocência.
(Sei entrementes que a ciência faz cópia de ovelhas
Que a ciência produz seres em vidros
Louvo a ciência por seus benefícios à humanidade
Mas não concordo que a ciência não se aplique em produzir encantamentos. )
Por quê não medir, por exemplo, a extensão do exílio das cigarras ?
Por quê não medir a relação de amor que os pássaros têm com as brisas da manhã ?
Por quê não medir a amorosa penetração das chuvas no dentro da terra?
Eu queria aprofundar o que não sei, como fazem os cientistas, mas só na área dos encantamentos.
Queria que um ferrolho fechasse o meu silêncio, para eu sentir melhor as coisas increadas.
Queria poder ouvir as conchas quando elas se desprendem da existência.
Queria descobrir por quê os pássaros escolhem a amplidão para viver enquanto os homens escolhem ficar encerrados em suas paredes ?
Sou leso em tratagem com máquina; mas inventei, para meu gasto, um Aferidor de Encantamentos.
Queria medir os encantos que existem nas coisas sem importância.
Eu descobri que o sol, o mar, as árvores e os arrebóis são mais enriquecidos pelos pássaros do que pelos homens.
Eu descobri, com o meu Aferidor de Encantamentos, que as violetas e as rosas e as acácias são mais filiadas dos pássaros do que dos cientistas.
Porque eu entendo, desde a minha pobre percepção, que o vencedor, no fim das contas, é aquele que atinge o inútil dos pássaros e dos lírios do campo.
Ah, que estas palavras gratuitas possam agora servir de abrigo para todos os pássaros do Brasil!

sábado, novembro 10, 2007

Entendeu?




São Gregorio. Mestre do Registro Gregorii.
A PRÉ-HISTÓRIA DO SUJEITO.

“Como sabemos, no entanto, o conflito de um neurótico torna-se compreensível e admite solução somente quando é remontado à sua pré-história, quando uma pessoa volta atrás ao longo do caminho que sua libido seguiu quando ela adoeceu”. Freud.

terça-feira, novembro 06, 2007


O nascimento da Virgem. Mestre Marienlebens.
CÍRCULO VICIOSO
Machado de Assis

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:

"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?"...

sexta-feira, novembro 02, 2007


Crucifixo. Cimabue.
ÀS URTIGAS
“A rejeição total do conhecimento analítico pode ocorrer sempre que surge uma resistência especialmente forte em qualquer profundidade da mente. Às vezes conseguimos, depois de muito trabalho, fazer com que o paciente aprenda algumas partes do conhecimento analítico e possa lidar com elas como posses suas, e mesmo assim podemos vê-lo, sob o domínio da própria resistência seguinte, lançar tudo o que aprendeu às urtigas e ficar na defensiva como o fez nos dias em que era um principiante despreocupado. Tive de aprender que a mesmíssima coisa pode acontecer tanto com psicanalistas como com pacientes em análise.” Freud.

terça-feira, outubro 30, 2007


A Sagrada Família. Mestre de Franckfurt.
EU CANTAREI TEU AMOR TÃO DOCEMENTE
Luís Vaz de Camões

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns têrmos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me- ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.

quinta-feira, outubro 25, 2007


Retrato da Rainha Maria Amália da Saxónia. Mengs.
A IMAGINAÇÃO CRIADORA
"Quando a pessoa é insatisfeita com o mundo real e possui aquilo que chamamos dotes artísticos, pode transformar suas fantasias não em sintomas, mas em criações artísticas, fugindo, assim, da "neurosis" e voltar a encontrar por esse caminho indireto, a relação com a realidade." Freud.

terça-feira, outubro 23, 2007


Santo Estevão. Memling.
INTIMIDADE
Antero de Quental

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me às vezes a cabeca à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras - mentindo - que me tens amor...

sexta-feira, outubro 19, 2007

Harmonia em vermelho. Matisse.



O MORCEGO
Augusto dos Anjos.

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, á noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

terça-feira, outubro 16, 2007


A Trindade. Masaccio.
A VIDA PASSA E EM PASSAR CONSISTE
Florisvaldo Mattos

Logo, fecho o caixão e fecho o tempo
das almas arbitrárias que vivi.
Amante e amado fui e conheci
a dor que é de meu tempo passatempo.

Rebenta, alma insensata, o teu passado
e vai por outras dores comezinhas;
segue por tua senda, a que caminhas,
rio em que tua margem é o outro lado.

Estás ausente em ti para o meu gesto,
simples estado neutro de passar,
de olhar, sentir e perceber funesto

o súbito negar da primavera,
mais que breve e raro, cumprimentar
o prazer de passar que a vida era.

sexta-feira, outubro 12, 2007

quinta-feira, outubro 11, 2007

Como escolho os meus amigos Oscar Wilde

COMO ESCOLHO OS MEUS AMIGOS
Oscar Wilde

Escolho os meus amigos não pela pele ou por outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero o meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho os meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.
Não quero só o ombro ou o colo, quero também a sua maior alegria.
Amigo que não ri conosco não sabe sofrer conosco.
Os meus amigos são todos assim: metade disparate, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade a sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.

Não quero amigos adultos, nem chatos
Quero-os metade infância e outra metade velhice.
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois vendo-os loucos e santos, tolos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.

terça-feira, outubro 09, 2007


Lamentação sobre o Cristo morto. Mantegna.

A lista. Oswaldo Montenegro

A LISTA
Osvaldo Montenegro

Faça uma lista de grandes amigos,
De quem você via há dez anos atrás.
Quantos você ainda vê todo dia,
Quantos você já nem encontra mais.
Faça uma lista dos sonhos que tinha, quantos você desistiu de sonhar?...
Quantos amores, jurados pra sempre - quantos você conseguiu preservar?
Onde você ainda se reconhece? - na foto passada, ou no espelho de agora?
Hoje e do jeito que achou que seria?
Quantos amigos você jogou fora.
Quantos mistérios que você sondava,
Quantos você conseguiu entender?...
Quantos segredos que você guardava
E que hoje são bobos - ninguém quer saber.
Quantas mentiras você condenava
E quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo,
E que eram o melhor que havia em você!...
Quantas canções que você nem cantava
Hoje assovia, pra sobreviver.
Quantas pessoas que você amava...
Hoje acredita que amam você?...

sexta-feira, outubro 05, 2007


Olympia. Manet.

Flor do asfalto. Guilherme de Almeida. Poesia

FLOR DO ASFALTO
Guilherme de Almeida

Flor do asfalto, encantada flor de seda,
sugestão de um crepúsculo de outono,
de uma folha que cai, tonta de sono,
riscando a solidão de uma alameda...

Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um gume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade!

terça-feira, outubro 02, 2007

domingo, setembro 30, 2007

A incompletude. Freud

“Logo me dei conta da necessidade de levar a efeito uma auto-análise, e o fiz com a ajuda de uma série de meus próprios sonhos que me conduziram de volta a todos os fatos da minha infância, sendo ainda hoje de opinião que essa espécie de análise talvez seja o suficiente para uma pessoa que sonhe com freqüência e não seja muito anormal.”
“Minha auto-análise continua interrompida e eu percebi a razão. Só posso me analisar com a ajuda de conhecimentos obtidos objetivamente (como os de um estranho). A verdadeira auto-análise é impossível; não fosse assim, não haveria doença [neurótica]”.
“Na auto-análise o perigo da incompletude é particularmente grande. A pessoa se satisfaz com uma explicação parcial, por trás da qual a resistência pode facilmente estar retendo algo que é talvez mais importante”. Freud.

Transfiguração. Lotto.

quinta-feira, setembro 27, 2007

FESTA SUPIMPA. Charles Fonseca. Poesia.

FESTA SUPIMPA
Charles Fonseca

Eu nunca te vi tão linda
Nem quando em minha garupa
Tu criança eu em upa
Relinchava lembro ainda

Era eu o teu cavalo
Tu me eras doce sonho
De menina, 'stou tristonho,
Saudoso de ti só falo

De te ver já não menina
Agora tu és uma moça
Cuidar de criança é louça,
Pediatra supimpa.



Manhã de páscoa. Lorrain.
O DUPLO
Affonso Romano de Sant'Anna

Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.

Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.

Alegoria do bom governo. Lorenzetti.

terça-feira, setembro 25, 2007

A vereda da vida. Elisio Felix da Rocha. Poesia

A vereda da vida
Elisio Felix da Rocha

Não indaguei de ninguém, ninguém me disse
O início dos meus primeiros anos
Mas nos passos dos tristes desenganos
Vim parar na ladeira da velhice
E, temendo que o mundo não me visse,
Procurei arrodeios infernais
Mas o rio das águas imortais
Me mostrou a corrente caudalosa
A vereda da vida é tão penosa
Que me assombro com as curvas que ela faz.

Vou morrer caminhando sem dar crença
As misérias da vida sem proveito
Estas coisas que o homem está sujeito
O desgosto, o amor e a doença
Sem temer nesta vida a negra ofensa
De espadas, pistolas e punhais
A vereda da vida é tão penosa
Que me assombro com as curvas que ela faz.

O desgosto do homem não se finda
Na tangente da vida tão extensa
A esperança fracassa e também pensa
Que seu dono cansado está de vinda
O desgosto fugiu, mas volta ainda
A esperança morreu, não volta mais
Pois a minha não vive, há tempo jaz
Nas montanhas da alma cavernosa
A vereda da vida é tão penosa
Que me assombro com as curvas que ela faz.

Acho tarde demais para voltar
Estou cansado demais para seguir
Os meus lábios se recusam a sorrir
Sinto lágrimas, não posso mais chorar
Eu não posso partir, também ficar
Pra seguir, a viagem é perigosa
A vereda da vida é tão penosa
Que me assombro com as curvas que ela faz.

segunda-feira, setembro 24, 2007

Apropriação indébita. Freud.

“Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos [transferência e resistência] e os torne como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas teses, dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista”. Freud.
O AMOR, QUANDO SE REVELA
Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Madona com dois anjos. Lippi.

domingo, setembro 23, 2007

AVISO DA LUA QUE MENSTRUA
Elisa Lucinda

Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.

Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia

Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita...

Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.

Cuidado com cada letra que manda pra ela!

Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.

Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!

Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.

Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.

Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos...

Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.

Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.

Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente.

Ela é uma cobra de avental.

Não despreze a meditação doméstica.

É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofia
cozinhando, costurando
e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...

Você que não sabe onde está sua cueca?

Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.

E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.

São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?

O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.

Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.

Tá, não, homem.

Tá citando o princípio do mundo!

Tobias e o anjo. Lippi.

sexta-feira, setembro 21, 2007

SERMÃO DO BOM LADRÃO
Padre Antonio Vieira

“Este sermão, que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. E por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade daquele lugar, e nada à piedade deste. Uma das coisas que diz o texto é que foram sentenciados em Jerusalém dois ladrões, e ambos condenados, ambos executados, ambos crucificados e mortos, sem lhes valer procurador nem embargos (...). Pediu o Bom Ladrão a Cristo que se lembrasse dele no seu reino: Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum. E a lembrança que o Senhor teve dele foi que ambos se vissem juntos no Paraíso: Hodie mecum eris in Paradiso. Esta é a lembrança que devem ter todos os reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo: Mecum. Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. Isto é o que hei de pregar. Ave Maria”.

A chocolateira. Liotard.

quinta-feira, setembro 20, 2007

SUSPIROS VAGOS. Charles Fonseca. Poesia.

SUSPIROS VAGOS
Charles Fonseca

No relógio as horas batem,
Corre manso o rio das contas
Levando no faz de contas
Tantas vidas pelas margens!

Batem as horas no relógio
Na parede do sobrado,
Tangem almas no assombrado,
Queixas gemem em velório

Nas paixões das horas vagas,
Vagos amores lá dormem,
No peito de amantes sobem,
Saudades, suspiros vagos...



As riquíssimas horas. Limbourg.

quarta-feira, setembro 19, 2007

Cântico dos cânticos
Rei Salomão

Quão belos são os teus pés
nas sandálias que trazes, ó filha de príncipe!
As colunas das tuas pernas são como anéis
trabalhados por mãos de artista.
o teu umbigo é uma taça arredondada,
que nunca está desprovida de vinho.
O teu ventre é como um monte de trigo
cercado de lírios.
Os teus dois seios são como dois filhinhos
gêmeos duma gazela.
O teu pescoço é como uma torre de marfim.
Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon,
que estão situadas junto da porta de Bat-Rabim.
O teu nariz é como a torre do Líbano,
que olha para Damasco.
A tua cabeça levanta-se como o monte Carmelo;
os cabelos da tua cabeça são como a púrpura
um rei ficou preso às suas madeixas.
Quão formosa e encantadora és,
meu amor, minhas delícias!
A tua figura é semelhante a uma palmeira.
Eu disse. Subirei à palmeira,
e colherei os seus frutos.
Os teus seios serão, para mim, como cachos de uvas,
e o perfume da tua boca como o das maçãs.

segunda-feira, setembro 17, 2007


Leda e o cisne. Da Vinci. "Foi dessa união que nasceram os ovos, matrizes de gêmeos e gêmeas, Castor e Pollux (constelação dos Gêmeos), Helena e Clitennestra (Guerra de Troia, traição de Clit a Agamenon, vingança de Electra - complexo de Electra, símile ao Édipo masculino." (colaboração do poeta Ernane Gusmão).
ARGILA
Raul de Leôni

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

domingo, setembro 16, 2007


São José. La Tour.
CULTIVO UMA ROSA BRANCA
Jose Marti

Cultivo uma rosa branca,
em julho como em janeiro,
para o amigo verdadeiro
que me dá sua mão franca.

E para o cruel que me arranca
o coração com que vivo,
cardo, urtiga não cultivo:
cultivo uma rosa branca.

quinta-feira, setembro 13, 2007

O amor ambivalente. Freud.
“Qualquer pessoa que investigue a origem e a significação dos sonhos de morte de parentes amados (pais, irmãos ou irmãs) poderá convencer-se de que as pessoas que sonham, as crianças e os selvagens estão de acordo em sua atitude para com os mortos – uma atitude baseada na ambivalência emocional.” Freud.

O beijo. Klimt.

segunda-feira, setembro 10, 2007

RECEITA DE MULHER
Vinícius de Moraes

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

O visitante. Kirchner.

sábado, setembro 08, 2007

Uma visão poética da velhice.

Lembra-te também do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos em que dirás: não tenho prazer neles; antes que se escureçam o sol e a luz, e a lua, e as estrelas, e tornem a vir as nuvens depois da chuva; no dia em que tremerem os guardas da casa, e se curvarem os homens fortes, e cessarem os moedores, por já serem poucos, e se escurecerem os que olham pelas janelas, e as portas da rua se fecharem; quando for baixo o ruído da moedura, e nos levantarmos à voz das aves, e todas as filhas da música ficarem abatidas; como também quando temerem o que é alto, e houver espantos no caminho; e florescer a amendoeira, e o gafanhoto for um peso, e falhar o desejo; porque o homem se vai à sua casa eterna, e os pranteadores andarão rodeando pela praça; antes que se rompa a cadeia de prata, ou se quebre o copo de ouro, ou se despedace o cântaro junto à fonte, ou se desfaça a roda junto à cisterna, e o pó volte para a terra como o era, e o espírito volte a Deus que o deu. Vaidade de vaidades, diz o pregador, tudo é vaidade.
(Eclesiastes. Capítulo 12)

Auto-retrato.Angelica Kauffmann.

sexta-feira, setembro 07, 2007

Quem ama odeia e vice-versa.
“Quando uma esposa perde o marido ou uma filha a mãe, não é raro acontecer que a sobrevivente fique atormentada por dúvidas atrozes (às quais damos o nome de ‘autocensuras obsessivas’) quanto a se ela própria não poderia ter sido a responsável pela morte desse ente querido através de algum ato de descuido ou negligência. Nenhuma quantidade de lembranças do cuidado que prodigalizou ao sofredor e nenhuma quantidade de refutações objetivas da acusação servem para dar fim ao tormento. Essa atitude pode ser encarada como uma forma patológica de luto e, com a passagem do tempo, pouco a pouco se desvanece. A investigação psicanalítica desses casos revelou os motivos secretos da perturbação. Descobrimos que, num certo sentido, essas auto-acusações objetivas são justificadas, e é esta a razão de constituírem prova contra contradições e protestos. Não é que a pessoa enlutada seja realmente responsável pela morte ou na realidade culpada de negligência, como as auto-acusações declaram ser o caso. Não obstante, havia algo nela – desejo que lhe era inconsciente – que não ficaria insatisfeito com a ocorrência da morte e que poderia realmente tê-la ocasionado, se tivesse poder para isso. E após a morte haver ocorrido, é contra esse desejo inconsciente que as censuras são uma reação. Em quase todos os casos em que existe uma intensa ligação emocional com uma pessoa em particular, descobrimos que por trás do terno amor há uma hostilidade oculta no inconsciente.” Freud.

segunda-feira, setembro 03, 2007


Retrato de uma família. Jordaens.

APAIXONADAMENTE. Charles Fonseca

APAIXONADAMENTE
Charles Fonseca

Quando a ti chegarem filhos
Como os que a outros vieram
Tão carentes ao desamparo
E tão fortes se fizeram
Que ancestrais os esperam
Que não os ponham em trilhos?

Que tu mostres antiquários
Daqueles que te foram novos
Campanários que bimbalhem
De alegria gozosos
Que na vida se afastem
Das chaves dos claviculários

Para não fecharem as portas
Das janelas tirem trancas
Que circulem como os ventos
Pelas margens das barrancas
Dos rios que cata-ventos
Girem que movam comportas

Daquelas que prendem as águas
Que alagam os ribeirinhos
Que afugentam os bichos
De pêlo os cordeirinhos
Que te amem sem ter nichos
Que prendam seus pais, sem mágoas.

domingo, setembro 02, 2007


O povo de Doverschie. Jongkind.

Monólogo da noite. Ribeiro Couto. Poesia

MONÓLOGO DA NOITE
Ribeiro Couto

Esta noite estou triste e não sei a razão.
Vou, para espairecer minha melancolia,
Ouvir o mar, que o mar é uma consolação.
Paro junto do cais olhando a água sombria.
Intermitente, sob o véu da cerração,
Vejo uma luz vermelha a acenar-me... "Confia!"
Obrigado, farol que és como um coração...


A água negra, noturna, a bater contra o cais,
Ilude a minha dor fútil de vagabundo.
E o farol a acenar de longe... "Espera mais!"
Recordo... "Antônio, que o paquete fosse ao fundo!"
Depois, fico a pensar nos que foram leais,
Nos que tiveram a coragem de ir do mundo
E numa noite assim se atiraram do cais.
Água eterna... água terrível... água imortal...
Apavora-me a sua aparência sombria.
Se eu pudesse acabar de uma vez o meu mal!

Mas tenho medo. "Não... A água está muito fria.
Além de fria é funda e tem gosto de sal."
E surpreendo-me, a chorar de covardia,
Dizendo ao vento esse monólogo banal.

sábado, setembro 01, 2007


Arte bizantina. Isidoro.
O fardo de reinar.
“O tabu não somente escolhe o rei e o exalta acima do comum dos mortais mas também torna a sua existência um tormento e um fardo insuportável, reduzindo-o a uma servidão muito pior que a de seus súditos. Aqui, então, temos uma contrapartida exata do ato obsessivo na neurose, no qual o impulso que o suprime encontram satisfação simultânea e comum. O ato obsessivo é ostensivamente uma proteção contra o ato proibido, mas, na realidade, a nosso ver, trata-se de uma repetição dele. A expressão ‘ostensivamente’ aplica-se à parte consciente da mente e ‘na realidade’ à parte inconsciente.” Freud.

quinta-feira, agosto 30, 2007


Banho turco. Ingres.

CASAMENTO. Charles Fonseca

CASAMENTO
Charles Fonseca

Porque choras, oh poeta, em casamentos,
Mesmo se de estranhos for?
Serão sonhos do passado
Ou do futuro que não chegou?
Afinal, onde estará o teu amor?

quarta-feira, agosto 29, 2007


Isabela e o jarro. Hunt.
ENTRE O SAGRADO E O PROFANO Gustavo Dourado Prosagrado Saprofano Profaneio e Sacralizo Vou ao Dia do Juízo Com o Poeta de Feira Encontro Mulher Rendeira Parceira de Lampião Volto ao Afeganistão Vejo Alá em Tora Bora Talibã perdeu a hora Bin Laden se evaporou Valei-me Nossa Senhora Com tanta profanação Profanaram o coração Com a bomba americana Arafat comendo cana A igreja profanada Natividade sagrada Cercada pelo tirano O massacre de um povo Pelo ditador insano... O sagrado se explode com tanta contradição Valei-me Frei Damião Da Besta-Fera do Mal Que profana o sagrado Num sacrilégio imoral... O mundo precisa urgente acabar a tirania chega de barbaridade terror e hipocrisia Vamos dividir a renda Desprofanar a Poesia Acorda humanidade pra sagrada Nova Era Busharonte Besta-Fera Do Apokalixo Final Que nasça o sol surreal da primavera da paz Que o sagrado e o profano Sintetizem os Carnavais...

segunda-feira, agosto 27, 2007


Depois da tempestade. Winslow Homer.
SONETO DA FELICIDADE
Odylo Costa, filho

Não receies, amor, que nos divida
um dia a treva de outro mundo, pois
somos um só, que não se faz em dois
nem pode a morte o que não pode a vida.

A dor não foi em nós terra caída
que de repente afoga mas depois
cede à força das águas. Deus dispôs
que ela nos encharcasse indissolvida.

Molhamos nosso pão quotidiano
na vontade de Deus, aceita e clara,
que nos fazia para sempre num.

E de tal forma o próprio ser humano
mudou-se em nós que nada mais separa
o que era dois e hoje é apenas um.

sábado, agosto 25, 2007


Os embaixadores. Hans Holbein.
A desconfiança no pai. Freud.
“O modelo no qual os paranóicos baseiam seus delírios de perseguição é a relação de uma criança com o pai. A imagem que um filho faz do pai é habitualmente investida de poderes excessivos desta espécie e descobre-se que a desconfiança do pai está intimamente ligada à admiração por ele. Quando um paranóico transforma a figura de um de seus associados num “perseguidor”, está elevando-o à categoria de pai; está colocando-o numa posição em que possa culpá-lo por todos os seus infortúnios”. Freud.

sexta-feira, agosto 24, 2007


Café da manhã. Hogarth.
NO JARDIM DAS DELÍCIAS
Mário Q. Tomba

Oh tu que a mim manda flores
Que à distância espinhas
Acaso sabes que minhas
Rimas são-me só dores

Por não ver-te, estás tão longe,
Não cheirar-te os aromas
Não gozar-te nas alfombras
No jardim das delícias, onde?