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segunda-feira, julho 31, 2006

Licor de aniz. Ernane Gusmão. Poesia

LICOR DE ANIZ
Ernane Gusmão


Licor de anis, azul, embriagante,
a cada gole meus desejos trais.
O vulto da singela e doce amante,
fluidos perfumes, densas espirais.

Eu sorvo à tona deste anil bacante
e me inebrio em delírios tais;
ouço o murmúrio dela, soluçante,
em sintonia com meus mudos ais.

A timidez me prende; soluçante
o coração reclama, segue avante,
por que não quebras o temor e vais?

E, quedo embora, bafejou-me a graça...
licor de anis sumiu da minha taça
mas ela, dos meus olhos...nunca mais!

domingo, julho 30, 2006

Livro sobre nada. Manoel de Barros. Poesia

LIVRO SOBRE NADA
Manoel de Barros

Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:quando cheias de areia de formiga e musgo - elaspodem um dia milagrar de flores.

(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)

Também as latrinas desprezadas que servem para tergrilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.

(Eu sou beato em violetas.)

Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

(O abandono me protege.)

sábado, julho 29, 2006

Todo sentimento. Chico Buarque. Poesia

TODO SENTIMENTO
Chico Buarque

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar e urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente
Prefiro então partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro com certeza
Talvez num tempo da delicadeza

Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.

sexta-feira, julho 28, 2006

Canção do exílio. Gonçalves Dias. Poesia

CANÇÃO DO EXÍLIO
Gonçalves Dias

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que volte para lá;

Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

quinta-feira, julho 27, 2006

REMANSO. Charles Fonseca. Poesia

REMANSO
Charles Fonseca

Não sou seixo à margem paralítico
Nem pedra no eito abissal,
Sou barcaça em diagonal,
Vago eu ao porto teu aflito.

O fraco farol do pirilampo
Lambe em luz as trevas do pernoite.
Busco a aurora, fujo eu da noite,
Aporto minha nau em ti remanso.

quarta-feira, julho 26, 2006

O QUERERES
Caetano Veloso

Onde queres revólver sou coqueiro, onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo, e onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alta eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta, e ganha liberdade na amplidão

Onde queres família sou maluco, e onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco, e onde queres eunuco, garanhão
E onde queres o sim e o não, talvez, onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão, e onde queres cowboy eu sou chinês

Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato eu sou o espírito, e onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre decassílabo, e onde buscas o anjo eu sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói, e onde queres tortura, mansidão
Onde queres o lar, revolução, e onde queres bandido eu sou o herói

Eu queria querer-te e amar o amor, construírmos dulcíssima prisão
E encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou
E te quero e não queres como sou, não te quero e não queres como és

Onde queres comício, flipper vídeo, e onde queres romance, rock'nroll
Onde queres a lua eu sou o sol, onde a pura natura, o inseticídeo
E onde queres mistério eu sou a luz, onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro, e onde queres coqueiro eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo te aprender o total do querer que há e do que não há em mim

terça-feira, julho 25, 2006

O bicho alfabeto tem vinte e três patas.

O BICHO ALFABETO TEM VINTE E TRÊS PATAS.
Paulo Leminski

O bicho alfabeto
Tem vinte e três patas
Ou quase

Por onde ele passa
Nascem palavras e
Frases

Com frases
Se fazem asas
Palavras
O vento leve

O bicho alfabeto
Passa
Fica o que não se escreve

segunda-feira, julho 24, 2006

Vós que ouvistes em rimas esparsas o sonho. Petrarca

VÓS QUE OUVISTES EM RIMAS ESPARSAS O SONHO
Petrarca

Vós que ouvistes em rimas esparsas o sonho,
Nos meus juvenis e suspirosos dias,
Com que eu nutria outrora o coração
Quando aquele que eu fui tinha alguma ilusão;

Se conheceis do amor a reflexão
Entre fugidias esperanças e o pranto em vão,
Piedade espero achar, mais que perdão,
Para as dores das minhas fantasias.

Agora vejo bem que longamente
Em mim falou-se, e ria muita gente,
E de mim mesmo, às vezes, me envergonho.

E amargo fruto que colhi sonhando,
Já sei - me arrependendo e envergonhando-
Que a sedução da vida é breve sonho.

domingo, julho 23, 2006

AMADA LUA. Charles Fonseca. Poesia

AMADA LUA
Charles Fonseca

É noite. Nas ruas sóis de mercúrio.
A lua sozinha no firmamento
Passeia no céu em tom de lamento,
Clareia sozinha meu céu escuro.

É noite. Luzes a vapor de sódio.
Na terra me elegem pra presidente
Da ong dos homens sem sentimento
Do amor feminino, dos homens sós.

Mas voltaste, amada. Pra mim és lua.
Pros outros reservo minha clemência
De noutras buscarem, por transferência,
Teu claro luar em minha alma nua.

sábado, julho 22, 2006

Triste vida corporal. Alberto da Costa e Silva

TRISTE VIDA CORPORAL
Alberto da Costa e Silva

Se houvesse o eterno instante e a ave
ficasse em cada bater d'asas para sempre,
se cada som de flauta, sussurro de samambaia,
mover, sopro e sombra das menores cousas
não fossem a intuição da morte,
salsa que se parte... Os grilos devorados
não fossem, no riso da relva, a mesma certeza
de que é leve a nossa carne e triste a nossa vida
corporal, faríamos do sonho e do amor
não apenas esta renda serena de espera,
mas um sol sobre dunas e limpo mar, imóvel,
alto, completo, eterno,
e não o pranto humano.

sexta-feira, julho 21, 2006

O NAVIO NEGREIRO – TRAGÉDIA NO MAR. Castro Alves.Poesia

O NAVIO NEGREIRO – TRAGÉDIA NO MAR
Antonio de Castro Alves

“'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
- Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

quinta-feira, julho 20, 2006

VELHO CASARÃO. Charles Fonseca. Poesia.

VELHO CASARÃO
Charles Fonseca

Ah! meu velho casarão
Da Fazenda São João!
De ti tenho só saudade.
Que pena em te ver só,
Branco azul avermelhado!
Também fui abandonado
- Mas quem te deu o desprezo oh poeta sofredor?
- Foi aquela inesquecível
Que um dia me jurou:
Jamais vou te abandonar.
Por duas vezes falou!
Uma, com voz de criança
Outra, já grande e a brilhar.
Longe dela, fico insone,
Se me fala, fico em paz.
Então, velho casarão,
Das ilusões que ainda tenho
Esta, aos teus pés, aqui jaz.